Nunca planejei morar fora. Minha mudança aconteceu no susto. Pintou uma oportunidade e eu queria ver como era. Eu dizia aos meus amigos e familiares que seria algo temporário. Fui embora com apenas uma mala de roupas e documentos.
Depois de sair do Brasil, por muito tempo evitei comprar coisas novas. Comprá-las significaria que eu fui embora de vez e não estava só de passagem.
Aluguei apartamentos mobiliados durante quatro anos. Comprei roupas e sapatos de frio para aguentar o inverno europeu, mas só. Livros, eu lia no Kindle.
Ano passado uma prima me perguntou se eu estou adaptada à Holanda, o que me levou a vários questionamentos. Esse mês completo 10 anos morando em terras estrangeiras, uma década, mas sinto que ainda não me adaptei à escuridão do inverno, aos constantes dias nublados e chuvosos, ao idioma e a alguns hábitos dos holandeses. Eu me adaptei?
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Antes de me mudar para Amsterdã, passei nove meses em Bruxelas e costumo dizer que foi lá que eu aprendi a ser imigrante, se é que a gente aprende a ser imigrante, ou pelo menos aprendi que a vida seria mais complicada. Eu, que vivia uma vida prosaica até então, de um dia para outro comecei a viver como num filme, recebendo visitas policiais em casa e passando horas na fila em frente ao centro de imigração.
Em maio desse ano, estive em Bruxelas para ver a exposição Chantal Akerman: Travelling no Bozar, o museu de belas-artes da cidade. Essa foi a maior exposição já feita da obra da diretora belga e reuniu trechos dos seus filmes, instalações audiovisuais, documentos escritos e materiais nunca antes exibidos.
Passei uma tarde inteira na exposição e por um momento perdi a noção de que eu estava na cidade à qual tentei me adaptar a todo custo, sem sucesso.
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Chantal já disse que cinema é tempo e espaço. Muitos dos seus filmes têm o espaço físico como elemento principal e apresentam personagens que se sentem deslocadas.
Meu filme preferido da diretora é o News from home e tem a própria diretora e a sua mãe como protagonistas, apesar de as duas não aparecerem. No filme, Chantal lê as cartas que a mãe escreveu para ela durante a época em que a diretora morou em Nova York. O filme é formado por cenas em movimento da Nova York dos anos 1970, mostrando lugares por onde Chantal costumava caminhar e as pessoas que ela encontra no caminho. Nessas cartas, a mãe atualiza a filha das novidades da vida cotidiana em Bruxelas e pede à filha para escrever de volta dizendo como está a vida dela em Nova York. A voz de Chantal é sobreposta pelos sons dessa cidade que parece a engolir.
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Sempre que volto a Bruxelas, é inevitável para mim não pensar na época em que vivi lá e em como as coisas mudaram desde então.
Costumo ficar hospedada perto da rua onde eu morava. Passo em frente ao prédio do meu antigo apartamento e fico um tempo lá parada sem saber bem o que eu procuro.
Em Bruxelas, fiz amizade com pessoas de diferentes países: Colômbia, Polônia, Rússia, Irã, Índia, Paquistão… Muitas dessas pessoas já não moram mais lá. Minha amiga polonesa, que foi uma das primeiras pessoas a me acolher na cidade e hoje mora nos Estados Unidos, uma vez me disse que Bruxelas é um lugar de passagem. Deve ser por isso que depois de tanto tempo eu estou sempre passando por lá.
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Dia desses passou por mim uma corrente no Instagram que pedia para compartilhar o cabelo mais curto que você já teve. A primeira vez que cortei meu cabelo bem curtinho foi em Bruxelas. Eu morava perto de um salão de beleza que estava sempre vazio e um dia resolvi entrar e pedir que cortassem meu cabelo o mais curto possível.
“Vous être sûre?”, perguntou o cabeleireiro.
Alguns meses antes, eu nunca teria pensado em ter um corte tão curto, mas naquele momento eu estava bem certa de que era o que eu queria. Talvez seja porque em Bruxelas eu me sentia um pouco invisível. Será que Chantal também se sentiu assim em Nova York?
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Na minha última viagem para Bruxelas, li My Mother Laughs (Ma mère rit no original), livro escrito por Chantal sobre a época em que ela precisou voltar de Nova York para Bruxelas para cuidar da mãe doente.
Marquei uma passagem do livro em que ela diz:
“Não sei o que vou fazer nem onde vou morar ou se vou para algum canto. Mas sei que vou para o meu apartamento em Paris. Eu tenho um apartamento. É a minha casa. É o que as pessoas dizem, minha casa.
Mas eu não sinto que eu tenha uma casa ou qualquer outro lugar. Um canto ou um lugar qualquer para me sentir em casa.”
– Chantal Akerman, My Mother Laughs (a tradução é minha)
Chantal viveu entre Bruxelas, Paris e Nova York, mas não se sentia em casa em nenhum desses lugares.
Uma vez ela disse que o único lugar onde se sentia um pouco menos deslocada era em Nova York porque ninguém que mora lá é de lá.
Ainda assim muitos dos seus filmes se passam em Bruxelas, a cidade onde ela nasceu e sua mãe, uma imigrante polonesa, morava.
O filme Les Rendez-vous d'Anna acompanha os deslocamentos de uma diretora de cinema, que viaja para a Alemanha para lançar um filme. No caminho de volta para Paris, ela para em Bruxelas, onde passa a noite com a mãe num quarto de hotel. Sua mãe é o único vínculo que ela tem com a cidade de onde ela vem.
No documentário I Don't Belong Anywhere: The Cinema of Chantal Akerman de Marianne Lambert, Chantal diz que, quando visitou Bruxelas após a morte da mãe, sentiu que não havia mais nada para ela lá.
Desde a morte do meu pai, também sinto que perdi meu vínculo com a cidade onde nasci.
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Recentemente joguei o meu antigo endereço em Bruxelas no Google e descobri num site de aluguel de imóveis que o apartamento, um estúdio de 43 m², foi completamente reformado e não se parece em nada com o lugar onde morei. Senti um frio na barriga que eu não sei explicar. Não tenho fotos do apartamento da época em que eu morava lá, mas lembro de cada canto daquele apartamento onde passei muitas das minhas tardes enquanto esperava a minha permissão de trabalho sair.
Como Chantal, queria ter feito um filme que registrasse todos os ângulos desse apartamento.
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Durante os meses em que morei em Bruxelas, a época em que conheci melhor a cidade foi quando eu fiz um curso de fotografia e tinha tarefas que envolviam sair de casa para fotografar. Uma das maiores frustrações que eu tenho como imigrante até hoje é ser confundida com uma turista. Mas com aquela câmera presa ao pescoço, eu sentia liberdade para caminhar e olhar para coisas que talvez não olharia. Me pergunto se foi isso o que Chantal buscou.
Os filmes de Chantal Akerman estão quase todos disponíveis para assistir na FILMICCA (link não patrocinado).
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Eu passei 6 meses em Seattle em 2013 e como eu sabia que era uma coisa temporária nunca refleti muito sobre meu status de imigrante.
Mas um dia um cara na rua me perguntou onde ficava a rua sei lá qual, e me deu uma sensação tão boa, ele acha que eu pertenço.
Em NY as pessoas perguntavam sobre ruas e eventos pro meu marido porque acham que ele parecia um judeu local (ele não é de família judaica).
O mais engraçado foram uns meninos com aquelas trancinhas correndo na ponte do Brooklin, imagino que pra alguma foto de alguma associação, e pararam pra perguntar meu marido se ele também tava indo. Quando ouviram que não continuaram correndo.
Maíra, tudo bem? Que edição maravilhosa.
Obrigada por escrever.