O tempo em três atos
ATO I
Quais são suas últimas memórias felizes?
Minha psicóloga me fez essa pergunta num não tão distante ano de 2020 enquanto eu me via sem perspectiva de voltar a ter uma vida normal.
A primeira lembrança que me veio à cabeça foi do show do Gilberto Gil que eu tinha visto no verão de 2019 no Hemisfério Norte, numa época em que tudo ainda parecia ser possível.
O show aconteceu na Antuérpia, cidade na parte flamenga da Bélgica, que fica a cerca de 2 horas de trem de Amsterdam. Como o show caía num dia de semana, planejei um bate-volta para lá com o meu parceiro. Começaria a trabalhar mais cedo nesse dia, depois pegaria o trem à tarde a tempo de chegar na cidade, comer alguma coisa e seguir para o show. No dia seguinte eu voltaria para Amsterdam no primeiro trem e iria direto para o trabalho.
A ida não saiu como eu tinha planejado. Naquela semana a Holanda e a Bélgica passavam por uma onda de calor e as temperaturas chegaram a quase 40°C. O trem em que estávamos superaqueceu e parou no meio do nada. Com as janelas fechadas, sem podermos sair e sem previsão para prosseguir a viagem, as coisas começaram a fugir do controle. As pessoas brigavam e começavam a passar mal. Quando finalmente andamos e chegamos à Antuérpia, só deu tempo de tomar um banho e correr para o local do show.
Os perrengues não acabaram por aí. Na estação de metrô, não havia funcionários nem máquinas para comprar bilhetes, nos fazendo ter que procurar online como comprar. Na hora de fazer baldeação, pegamos o tram na direção errada e fomos descobrir só bem mais tarde.
Passado tudo isso, ao chegarmos ao local do show, um anfiteatro a céu aberto dentro de um parque, valeu a pena cada instante. Lá estava um Gil sentado e tranquilo, que cantava as músicas do seu mais recente disco, Ok Ok Ok. Ele estava ali celebrando a vida depois de ter visto a morte de perto. O disco reflete esse sentimento. As músicas transformam em poesia sua experiência internado no hospital para o tratamento de uma insuficiência renal e cardíaca.
Ao final da música Quatro pedacinhos, Gil explicava em inglês com serenidade a biópsia que fez a médica arrancar "four tiny little pieces" do seu coração.
Os outros shows dessa turnê foram mais pomposos, como o da Filarmônica de Hamburgo. Nesse, o clima era mais relaxado e o próprio Gil parecia descontraído.
As músicas do disco fazem homenagens aos seus médicos, netos, bisnetos e amigos, mostrando a humildade de um grande artista da música brasileira de compor para os outros.
No show, Gil também cantou Se eu quiser falar com Deus em homenagem a João Gilberto, que tinha nos deixado alguns dias antes.
ATO II
Em 2022, três anos após o show da turnê de Ok Ok Ok, eu veria mais um show do Gil na Bélgica, em Bruxelas, dessa vez com toda a sua família reunida no palco como parte da turnê Nós A Gente.
Diferentemente do primeiro show, em que ele passou a maior parte do tempo sentado, aqui ele dançava e partilhava as músicas com os filhos, netos, bisnetos, genros e noras, como se o patriarca passasse o bastão para os seus sucessores.
Esse foi o primeiro grande show que assisti pós-covid. Mesmo de máscara num lugar aberto, eu sentia medo, mas também felicidade por estar vivendo um momento que dois anos antes não parecia ser possível.
ATO III
Em 2023, Gil atravessou o oceano mais uma vez para dar início aos seus shows de despedida dos palcos europeus na turnê Aquele Abraço. Eu o vi se apresentar novamente, dessa vez em Amsterdam, onde eu moro. Apenas uma parte pequena da família o acompanhou nessa turnê, que incluiu músicas de Gal Costa, Rita Lee e Luiz Gonzaga.
O show teve alguns problemas técnicos e quando uma pessoa da plateia disse que os músicos poderiam levar o tempo que precisassem, Gil falou sobre ter paciência.
No candomblé, Iroko é conhecido como o orixá do tempo. Representado por uma árvore, tem como domínio a vida, a morte e a ancestralidade e nos ensina a ter paciência. Quando penso em Gil, é essa imagem que eu vejo. Alguém que teima em ter fé, mas não uma fé cega, sem ignorar as tragédias da vida. Alguém que vive no aqui e agora e escolheu levar a vida com ternura mesmo em face de um mundo hostil.
A música de Gil esteve sempre presente na minha vida de alguma forma. Na infância, Sítio do Picapau Amarelo embalava minhas manhãs. Na adolescência, foi sua versão de Sina na abertura da série Confissões de Adolescente que passava na TV Cultura. Extra fez parte da trilha sonora das minhas viagens de carro com meus pais para o Espírito Santo.
Na fase adulta, recorri muitas vezes à sua voz e à sua música quando precisava de calma, enquanto esperava meu pai sair da sala de cirurgia ou enquanto empacotava minhas coisas para me mudar.
Gil conta que compôs a música Tempo Rei em reposta a Oração ao Tempo de Caetano Veloso:
“Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em Oração ao Tempo, onde a frase-chave para mim é: ‘Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido’ – quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação."
Ele continua:
"Assim como eu ‘não posso esquecer que um dia houve em que eu não estava aqui’ (Cada Tempo em Seu Lugar), um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo – nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo?"
Durante boa parte da minha vida, tentei lutar contra o tempo. Hoje, aos 35 anos, depois de perder meu gato e meu pai no ano passado, tenho tentado encarar o tempo de outra forma e parar de esperar um novo tempo que não chega enquanto vivo o tempo que me resta. Penso em outra música de Gil, Era nova, que diz:
Novo tempo sempre se inaugura
A cada instante que você viver
O que foi já era, e não há era
Por mais nova que possa trazer de volta
O tempo que você perdeu, perdeu, não volta
Embora o mundo, o mundo, dê tanta volta
Embora olhar o mundo cause tanto medo
Ou talvez tanta revolta
Gil é um dos meus artistas preferidos da música e por isso há uma certa tristeza em ver um músico como ele se despedir dos palcos. Mas enquanto sua obra vasta permanece, Gil segue sobrevivendo ao tempo.
Para além do tempo
No meio de dias estranhos, pesados (as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crises, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe.
Caio Fernando Abreu nessa crônica escrita para o jornal em 1993, que poderia muito bem ter sido escrita nos dias de hoje.
Um abraço e até a próxima,
Maíra