Björk, fungos e mudanças
Temos vivido uma espécie de “fungo mania”. A série The Last of Us, baseada numa série de videogames de mesmo nome, foi ao ar de janeiro ao último mês de março, e retrata uma pandemia fictícia causada pelo fungo do gênero Cordyceps. Livros como A trama da vida: como os fungos constroem o mundo e O cogumelo no fim do mundo têm sido bastante comentados nos últimos anos, assim como o documentário Fungos Fantásticos da Netflix. Os cogumelos, que pertencem ao reino dos fungos, também estão na moda e na decoração, sendo considerados pelo Pinterest umas das tendências para 2023.
Ano passado, a Björk lançou o décimo disco da sua carreira, que ela definiu como o seu “álbum dos cogumelos”. O nome do disco, Fossora, é a versão feminina (inventada por Björk) da palavra “fossor” em latim e significa “aquela que cava”.
Junto com os seus antecessores Utopia e Vulnicura, os discos podem ser vistos como uma trilogia. Vulnicura, que significa “cura para as feridas”, foi o disco sobre o seu divórcio, após uma década de relacionamento com Matthew Barney, e o seu processo de cura. Já Utopia, ela diz que é sobre “redescobrir o amor, mas de uma forma espiritual.” Em Fossora, Björk escava a terra com as mãos em busca da sua ancestralidade.
Se pudéssemos definir Vulnicura, Utopia e Fossora como os elementos da natureza, seriam respectivamente água, ar e terra. E se Utopia foi o disco dos passáros, Fossora é o disco dos fungos.
Debaixo da terra, os fungos apresentam uma trama de filamentos, chamados “hifas”, semelhantes a raízes. O conjunto desses filamentos é conhecido como “micélio”. As hifas crescem em todas as direções, cobrindo mais de 450 quatrilhões de quilômetros. O que vemos de fungos e cogumelos na superfície é apenas uma parte ínfima dessa rede complexa.
Na música Fossora, Björk canta sobre esse crescimento subterrâneo que a gente não vê:
At last
We stayed
In one place long enough (Fossora)
To shoot down deep hyphae roots (Fossora, fossora)
(Fossora)
(Fossora)
That penetrate concrete and plastic (Fossora, fossora)
(Fossora)
(Fossora)
Even though the ground is burnt (Fossora)
Underneath monumental growth
Fossora (Fossora, fossora)
A metáfora do crescimento também aparece em Allow:
Allow, allow, allow, allow me (You to grow, you to grow)
Me to grow (Me to grow, grow, grow)
Allow, allow
To grow
O clipe de Atopos, o primeiro a ser lançado, começa debaixo da terra. Björk canta ao lado de um grupo de músicos tocando clarinetes, e o DJ e produtor indonésio Kasimyn, cercados por fungos e cogumelos. No clipe da música Fossora, vemos imagens de cogumelos abrindo e pulsando atrás deles.
O documentário Fungos Fantásticos, que foi uma das inspirações para o disco, além de bonito visualmente, mostra uma outra função dos fungos que não é muito falada: a de conectar as árvores e plantas, sendo usados por elas para se comunicarem e trocarem nutrientes. Essa conexão é fundamental para o crescimento delas. A ideia está presente na música Atopos:
If we don't grow outwards towards love
We'll implode inwards towards destruction
If my plant doesn't reach towards you
There's internal erosion towards all
E claro, não podemos falar de fungos sem falar de decomposição. Os fungos são seres decompositores de matéria orgânica, tendo o papel de reciclá-la e devolvê-la ao meio ambiente em forma de nutrientes.
Na música Fossora, Björk cava fundo a terra e decompõe as suas dores e escombros, transformando-os em algo novo:
Her fossorial claw
Digs downwards
Dissolves old pain, dug down to rot
Decomposes debris
Degrades
Sorrows, hair and hooves
A terra está associada à fertilidade e Fossora também é um disco sobre maternidade e a mãe de Björk, a ativista ambiental Hildur Rúna Hauksdóttir, que morreu em 2018. Ancestress e Sorrowful Soil foram compostas em homenagem a Hildur. A primeira teve a participação do filho primogênito de Björk, Sindri Eldon.
Numa entrevista à Vanity Fair Italia, ela comenta sobre a música:
“Agora percebo que ela fala também de mim e do meu irmão, retrata os sentimentos nos corredores do hospital, as emoções angustiantes. Ninguém te ensina a lidar com um pai doente, é um papel em que você se encontra e tem que improvisar para passar por todo o processo. Ancestress diz como é testemunhar o sofrimento de alguém que você ama.”
O clipe retrata o funeral da sua mãe, ou pelo menos a versão do ritual fúnebre que gostaria de ter dado a ela para celebrar a sua vida.
Em Her Mother’s House, que conta com a participação da filha Ísadóra Bjarkardóttir Barney, Björk descreve o sentimento de ver um filho sair de casa.
Em outra entrevista à revista Icon do El País, ela explica:
“Acho que todo álbum é sobre a morte e o nascimento. Acho que todos nós passamos por períodos de morte e nascimento a cada três anos. Sinto que todos os meus álbuns são o fim de alguma coisa e o princípio de algo novo.”
A morte (principalmente a dos nossos pais) muda a gente, assim como um divórcio. Essas mudanças podem ser percebidas nos álbuns de Björk, que são muito diferentes uns dos outros, tanto visualmente como em termos de sonoridade. Em Fossora, ela explora o gabber, um estilo de música eletrônica derivado do techno que surgiu na Holanda nos anos 1990.
Eu vejo Fossora como um disco sobre as mudanças quase imperceptíveis que acontecem dentro da gente. Mesmo quando lidamos com os mesmos problemas, não somos mais as mesmas pessoas de antes. Mudar é decompor o que não serve mais para dar início a um novo ciclo.
Mais sobre mudanças
Sou uma taurina com ascendente em touro e lua em capricórnio. Terra pura. Para alguém com um mapa como o meu, eu até que mudo bastante. Num período de 8 anos, mudei 2 vezes de país e 6 vezes de casa. Ano passado também mudei de profissão. Isso não quer dizer que eu não sofra com mudanças e acho que até hoje estou tentando me adaptar a elas.
Mudei muito nesses anos pandêmicos. Acho que todos nós mudamos de alguma forma. A newsletter foi mudando comigo e eu acho que não fazia mais sentido usar o mesmo nome de antes.
Uma mudança talvez imperceptível: de (re)descobrindo para ruído.
Isabel Allende escreve no seu livro Paula:
“Silêncio antes de nascer, silêncio depois da morte, a vida é puro ruído entre dois silêncios insondáveis.”
Os últimos textos dessa newsletter vêm de uma vontade de escutar esses ruídos de uma forma mais atenta, sejam eles música ou outros sons.
Achados no YouTube
Ainda gosto de usar o YouTube para encontrar clipes e shows inteiros para assistir. Mês passado vi esse registro de uma série de shows que a Björk fez na Islândia em 2021 durante a turnê Orkestral. É de uma beleza única!
Outras dicas
Terminei recentemente de ouvir o audiolivro Faith, Hope and Carnage, em que o jornalista Sean O'Hagan entrevista o músico Nick Cave, e me marcou uma passagem em que Nick diz que, quando compôs a música Fireflies do disco Ghosteen, originalmente ele escreveu “The sky is full of exit wounds of light”. Nick fala que, apesar de ter gostado muito dessa frase, algo nela o incomodou até que ele percebeu que tinha tirado a frase da coletânea de poesia Night Sky with Exit Wounds de Ocean Vuong. Por fim, ele acabou mudando a frase para “The sky is full of momentary light”. Mas eu nunca mais vou ouvir essa música da mesma forma.
Li Sobre a terra somos belos por um instante ano passado e foi uma das minhas leituras preferidas do ano. Ainda não li os poemas de Vuong, mas tanto Night Sky with Exit Wounds (que saiu no Brasil pela Editora Âyiné com o nome Céu noturno crivado de balas) quanto Time Is a Mother (esse ainda sem tradução no Brasil) estão na minha lista de livros para ler.
Nessa conversa entre Björk e Vuong para o site da revista AnOther, eles falam sobre como a obra do outro teve algum impacto neles, e conversam sobre temas como morte e maternidade, presentes na obra dos dois, e ainda sobre mudanças.
Um abraço e até a próxima,
Maíra