(re)descobrindo: Joanna Newsom
Eu passo muito tempo sem ouvir Joanna Newsom, mas todo ano tem o momento em que me dá vontade de ouvi-la.
Ano passado, por conta da pandemia e outros problemas de saúde na família, eu perdi totalmente a vontade de ouvir música. Por isso o momento não veio. Agora, em 2021, o momento chegou.
Enquanto eu ouvia as músicas do primeiro disco da cantora, The Milk-Eyed Mender, tive vontade de chorar e chorei inconsolavelmente.
Essa não foi de longe a primeira vez que chorei ouvindo música, claro. Sou uma grande fã de músicas para chorar. Ou como o Tom Waits disse numa entrevista para a NPR em 2002, gosto de belas melodias que dizem coisas terríveis. Mas dessa vez foi diferente.
O choro veio da beleza da música da Joanna Newsom. De pensar que num mundo com tanto sofrimento e coisas horríveis acontecendo, também existe algo tão bonito que é a música.
Numa das vezes que voltei ao Rio, reunida com um amigo e uma amiga na sala da casa dela, ouvíamos música enquanto conversávamos para matar a saudade. Meu amigo perguntou se podia colocar Joanna Newsom para tocar. Minha amiga nunca tinha ouvido. Enquanto ouvíamos, fiquei pensando como devia estar sendo para minha amiga ouvir aquelas músicas e aquela voz pela primeira vez sem nem um disclaimer do que ela estava prestes a testemunhar.
Não me lembro quando (e como) foi a primeira vez em que eu ouvi Joanna Newsom. Mas agora, depois de tanto tempo, parecia a primeira vez.
Parte da razão de eu ficar tanto tempo sem ouvir as músicas da Joanna, eu confesso, é não poder ouvi-las com apenas um clique. No Spotify, a única música da cantora que está disponível é o tema musical dos Muppets. Ela já fez várias críticas à plataforma, comparando o Spotify a uma banana que apodreceu.
Seus discos de vinil passam muito tempo esgotados nas lojas virtuais.
Na hora tive então que apelar para o YouTube. O The Milk-Eyed Mender está disponível por inteiro para ouvir lá.
Nos comentários do disco no YouTube, uma pessoa chamada Luiza Modesto escreveu há um ano que ouvir a Joanna provoca uma sensação estranha de que tudo vai ficar bem. Num momento tão difícil da história, sem perspectiva alguma, é dessa voz que eu estava precisando ouvir.
Outra pessoa chamada Gaia compartilhou um momento da sua infância em que ouvia Joanna em casa com a mãe. E mesmo que eu não conheça essa pessoa nem saiba se ela sequer existe ou se isso de fato aconteceu, não pude deixar de sentir ternura ao ler essa memória, da mesma forma que senti ao lembrar daquela noite na sala da minha amiga em que ouvimos Joanna porque meu amigo quis compartilhar um pouco da beleza da música dela conosco.
Numa outra noite, na sala da minha casa, eu e meu companheiro colocamos o The Milk-Eyed Mender para tocar e passamos a noite ouvindo música como antigamente, sentados no sofá da sala sem fazer mais nada além de tomar café e acompanhar as letras das músicas.
Ao ouvir as músicas desse disco, que parecem tão puras (talvez pela voz da Joanna Newsom ou por instrumentos como a harpa e o cravo), lembro desses momentos e sinto que estou sendo transportada para uma época distante, sem dor.
Suas letras evocam mundos estranhos imaginários, onde até os moluscos se casam e ela dança valsa com o mar, mas também reais, como as cidades-fantasmas de Swansea e Calico na Califórnia. Essas imagens são reforçadas por palavras e expressões da mitologia grega e do folclore celta. O site de entretenimento Vulture chegou a criar uma lista com o vocabulário usado nas músicas da cantora. Até a forma como a Joanna pronuncia as palavras é às vezes diferente, como se ela tivesse criado uma linguagem só dela.
O diretor de cinema russo Andrei Tarkovsky uma vez disse numa entrevista que deu para o roteirista e diretor Gian Luigi Rondi, em 1980, que o único meio artístico que consegue tocar as pessoas diretamente é a música.
Nos anos da pandemia, eu tenho me refugiado, dentro de casa, no cinema e na dança, dois meios que também dependem da música. Mas nenhum desses meios me tocou de uma forma tão profunda como ouvir a música da Joanna Newsom agora.
Sempre que eu ouço os discos dela, me pergunto por que não a ouço mais vezes. Por outro lado, se eu de fato a ouvisse mais vezes, talvez perdesse a magia.
O Spotify tem uma categoria chamada "Suas músicas estão com saudade", que faz parte dessa estratégia de marketing das marcas darem sentimentos aos produtos que oferecem, para fazer com que a gente volte a consumi-los. Lá eu vejo discos que ouvi repetidas vezes numa determinada época e hoje nem me passa pela cabeça ouvi-los. Não porque eu não goste mais deles.
É muito bom ouvir as músicas que a gente gosta, mas também é quase indescritível a sensação de conforto que eu tenho de voltar a essas músicas depois de ficar tanto tempo sem ouvi-las. É o mais perto que eu consigo chegar agora da sensação de voltar para casa depois de uma longa viagem. É como se eu me sentisse acolhida e protegida.
Senti algo parecido mês passado vendo uma live do Lucas Vasconcellos, músico do Rio de Janeiro que formava a banda Letuce com a cantora Letrux. Foi uma live curta para o Festival Rockit!, que eu acabei vendo outras vezes depois. Ele cantou músicas da sua carreria solo, além de composições suas para as bandas Letuce e Binário.
As músicas do Lucas, que "falam de coração", me passam essa beleza do mundo, mesmo que às vezes tenham temas tristes. Elas também me proporcionam essa sensação estranha e tranquila de que as coisas vão ficar bem. Recentemente o cantor gravou um vídeo para o IGTV tocando a música Meu Seu do primeiro disco dele, que retrata uma memória da sua infância. Na legenda, ele fala sobre a música:
Pra mim essa música é uma imagem que tenho na memória, uma fotografia que talvez em parte eu tenha inventado, mas é muito viva em mim. As cores, o cheiro de sundown e meu pai me levando pela mão pra ver uma rede cheia de mariscos que acabava de chegar na areia. A concha que eu achei e mexeu era um ermitão e nunca me mordeu nem sangrou mas a saudade do meu pai sim.
Em abril desse ano, o Lucas lançou um disco chamado Teoria da Terra Plena, que está bem bonito. E ainda tem essa capa incrível que vocês podem ver aqui embaixo. Numa entrevista para o Scream & Yell, ele conta a história por trás das músicas, faixa a faixa.
Ouvir Joanna Newsom me deu vontade até de voltar a escrever sobre música. Minhas últimas newsletters acabaram sendo mais pessoais e fugindo do tema. Eu continuo ouvindo músicas novas e fazendo playlists para elas todos os anos, mas já não sinto mais vontade de escrever sobre um disco novo que acabou de sair. Quero também falar da sensação que é (re)descobrir um disco antigo ou um gênero musical novo para mim. Aproveitei então para mudar o nome da newsletter e dar uma nova cara a ela.
Ficarei feliz se também compartilhassem comigo o que andam (re)descobrindo.
Fiquem bem dentro do possível e até a próxima,
Maíra