Na primeira autobiografia da Rita Lee, lançada em 2016, no capítulo dedicado à sua expulsão dos Mutantes, ela escreve:
“Voltando aos finalmentes dos Mutas: minha saída do grupo aconteceu bem nos moldes de ‘o noivo é o último a saber’, no caso, a noiva. Depois de passar o dia fora, chego ao ensaio e me deparo com um clima tenso/denso. Era um tal de um desviar a cara pra lá, o outro olhar para o teto, firular um instrumento e coisa e tal. Até que Arnaldo quebra o gelo, toma a palavra e me comunica, não nessas palavras, mas o sentido era o mesmo, que naquele velório o defunto era eu.
‘A gente resolveu que a partir de agora você está fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na linha progressiva-virtuose e você não tem calibre como instrumentista’.
Uma escarrada na cara seria menos humilhante. Em vez de me atirar de joelhos chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante.”
No livro A divina comédia dos Mutantes, o jornalista e crítico musical Carlos Calado escreve sobre o episódio:
“[Há] tempos Rita vinha percebendo que seu papel na banda se tornava cada vez mais decorativo, principalmente depois que os rapazes começaram a flertar com os longos e eruditos improvisos do rock progressivo. ‘Tô cheia de ser o Jon Anderson da banda’, ela confessava aos amigos mais íntimos, numa referência irônica ao vocalista do Yes. Nem mesmo a iniciativa de comprar o Mellotron e o Mini-Moog na Inglaterra surtiu efeito. Quando Rita tentou usá-los durante os ensaios da banda, sem saber ainda como operá-los direito, acabou virando motivo de gozação. Provavelmente, havia uma dose de machismo nessa atitude dos rapazes, que a própria vítima acabou ironizando mais tarde como um ‘Clube do Bolinha’, mas Rita não tinha mesmo bagagem técnica para virar tecladista, de um dia para o outro. No fundo, jamais teve um real interesse em ser uma instrumentista.”
Veja bem, Rita teve uma longa carreira musical, vendeu milhões de discos, ganhou fama internacional e é considerada uma das maiores artistas do Brasil. Os Mutantes provavelmente não seriam a mesma banda sem ela. E Rita foi pioneira em muitos aspectos. Os sintetizadores Mellotron e Mini-Moog mencionados por Carlos Calado eram novidade no Brasil quando foram usados pelos Mutantes no disco Mande um Abraço Pra Velha de 1972. Rita juntou-os à lista de instrumentos que tocava, que incluía a auto-harpa e o teremim, mesmo que seu foco não fossem os instrumentos.
Há inclusive uma história curiosa de Rita envolvendo o Mellotron que ela conta na sua autobiografia de 2016. Para entrar no Brasil com o instrumento, “um bichão de tamanho mastodôntico” nas suas palavras, sem precisar declarar o instrumento na Alfândega, Rita registrou na ida um pequeno piano de brinquedo com o número de uma placa de alumínio falsa, que depois passou para o Mellotron na viagem de volta.
Minha história com os sintetizadores começou em 2019 com o disco Mother Earth's Plantasia do compositor e arranjador canadense Mort Garson, que meu parceiro me apresentou dizendo: “Talvez você goste desse disco. É música pra planta ficar feliz.” Foi um dos discos mais estranhos e interessantes que eu já tinha ouvido. Eu cheguei a escrever sobre ele na newsletter que eu tinha ainda na TinyLetter.
Lançado originalmente em 1976, o disco foi relançado em vinil em 2019 pelo selo independente Sacred Bones Records. A capa traz a legenda “Warm earth music for plants… and the people that love them”, acompanhada do desenho de um casal abraçando uma planta. Com títulos como You Don't Have to Walk a Begonia e Music to Soothe the Savage Snake Plant, Garson criou o disco para uma loja de plantas de Los Angeles chamada Mother Earth. Todo mundo que comprasse uma planta ganhava o disco. Redescoberto mais tarde no YouTube, acabou virando um clássico cult.
No ano seguinte, durante a pandemia, ouvi uma versão instrumental de Eleanor Rigby na Chances with Wolves, minha rádio online preferida, e cheguei até a compositora estadunidense Wendy Carlos. Com dupla formação em música e física, Wendy se dedicou a experimentar com o uso dos sintetizadores, especialmente o Moog, tendo ajudado Robert Moog a desenvolver o sintetizador que leva o nome deste inventor. Mas foi com Switched-On Bach, um disco com versões de músicas do compositor clássico Johann Sebastian Bach criadas com o sintetizador Moog, que Wendy recebeu reconhecimento, ganhando três prêmios Grammy.
Tanto Garson quanto Wendy são duas figuras importantes da música eletrônica, que ajudaram a popularizar o Moog. Nos anos 1970, uma versão portátil e mais acessível do instrumento foi lançada, o Mini-Moog, o mesmo que Rita Lee viria a usar.
Por muito tempo, eu repeti que não gostava de música eletrônica porque pensava nas raves e DJs como David Guetta. Em 2015, eu acabei caindo de paraquedas na Holanda, o país dos DJs, e quando algum colega de trabalho me perguntava se eu ia a um determinado festival ou ver algum DJ tocar, era mais fácil simplesmente dizer que eu não gostava desse tipo de música. Confesso que minha ignorância vinha também de uma certa preguiça. Vivendo na minha bolha algorítmica, que se alimenta de músicas parecidas com as que eu ouço, eu talvez não teria ouvido Mort Garson e Wendy Carlos até hoje. A música de Wendy Carlos está na trilha sonora de filmes clássicos como O Iluminado, Laranja Mecânica e Tron, mas apenas uma pequena parte da sua obra está disponível nas plataformas de streaming. É difícil até de encontrar os seus discos para comprar.
Também em 2020, saiu o documentário Sisters With Transistors sobre as mulheres pioneiras da música eletrônica. Dirigido por Lisa Rovner, o filme tem narração de Laurie Anderson. Entre as mulheres apresentadas, estão Maryanne Amacher, Suzanne Ciani, Delia Derbyshire, Pauline Oliveros, Daphne Oram, Éliane Radigue e Laurie Spiegel.
Para essas mulheres, os sintetizadores, na época máquinas gigantescas difíceis de transportar, foram sinônimo de liberdade. Numa entrevista para a revista digital self-titled, a compositora Suzanne Ciani, que se tornou um expoente do sintetizador Buchla, falou sobre a sua relação com o instrumento nos anos 1970 (a tradução é minha):
“Naquela época, eu via a política da nova música clássica e era bastante desanimador. Sendo mulher, as pessoas diziam: ‘Ah, você não tem o direito de reger.’ E isso e aquilo. Por isso, quando esse conceito de um meio musical controlado sozinho chamou a minha atenção, foi uma dádiva. Eu pensava: ‘Eu tenho o controle, é meu. E ninguém pode me dizer o que fazer.’”
Apesar das críticas ao documentário de incluir apenas mulheres brancas do eixo Estados Unidos e Europa, com exceção da chicana Pauline Oliveros, e de quase passar batido por Wendy Carlos, que é uma mulher trans, Sisters With Transistors não perde o mérito de levar a história dessas mulheres a mais e mais pessoas. Para mim, ele foi só o começo na minha jornada de ir atrás das mulheres da música eletrônica.
No mesmo ano de lançamento do documentário, eu ganhei de aniversário do meu parceiro um Akai MPK Mini, um controlador musical em que é possível simular sons de sintetizadores e outros instrumentos eletrônicos através de um teclado e diferentes botões (knobs e pads). Isso é feito através de uma interface digital conhecida como MIDI (Musical Instrument Digital Interface).
O presente de aniversário me pegou de surpresa porque até então eu não me via tocando um desses instrumentos, ou qualquer outro. Durante a minha infância e adolescência, quem tocava violão, guitarra e teclado no meu círculo de amigos e parentes eram os meninos. Além disso, com exceção dos meus primeiros meses num novo país, quando eu ainda esperava a minha permissão de trabalho e procurava emprego, depois que eu comecei a faculdade e o meu primeiro estágio, eu não parei mais de trabalhar. O tempo ficou escasso e eu achava que precisava gastá-lo com coisas que fossem úteis: aprendendo um idioma, fazendo cursos profissionalizantes, me exercitando. Até mesmo voltando a aprender a costurar para poder fazer minhas próprias roupas, já que é tão difícil encontrar algo do meu tamanho. Aprender a tocar um instrumento não acrescentaria nada à minha vida. A música em si não é nada concreto que a gente possa ver ou segurar com as mãos.
Eu comecei a experimentar com o instrumento na época em que o ganhei e achei muito complicado. Enquanto muitas pessoas aprendiam novos hobbies como fazer pão e diziam que era relaxante, aprender a tocar o Akai MPK Mini acabou virando mais um motivo de estresse e frustração. O “processo doloroso de me debater com o que não sei”, como
colocou em palavras.Acredito que tudo na vida tem o seu tempo. E às vezes não há um tempo e a gente precisa ou insistir ou desistir. Aquele com certeza não era o tempo certo para eu aprender a tocar o instrumento e acabei deixando de lado.
Agora em 2023, à beira de ter um burnout no trabalho, decidi tirar o Akai MPK Mini novamente da caixa para dar uma segunda chance a ele. Tenho o usado para aprender a tocar as notas no teclado, ou melhor, treinar meus dedos. Me sinto num duelo constante tentando domar os dedos das mãos. Lembro das palavras da minha professora de crochê, uma senhora holandesa que aprendeu a fazer crochê na escola. Quando eu confessei a ela que não sabia o que fazer com os meus dedos, ela respondeu dizendo que era compreensível, já que hoje não estamos mais acostumados a usar as mãos para trabalhos manuais.
Quando me pergunto por que estou aprendendo a tocar um instrumento, não sei a resposta. Eu não busco a perfeição, não penso em entrar numa banda, nem mesmo em compor uma música. Talvez conseguir tocar a música de algum artista ou banda que eu gosto. Ser apenas amadora – uma palavra que hoje em dia tem uma conotação negativa – no sentido de fazer as coisas por gosto ou por prazer, simplesmente porque quer.
Penso nas palavras de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias para Rita Lee: “[V]ocê não tem calibre como instrumentista.” Rita podia não ter nem querer, mas tocou vários instrumentos. Diferentemente de Arnaldo e Sérgio, que cresceram num ambiente musical com pais artistas, Rita cresceu ouvindo os pais dizerem: “Aqui nesta casa ou se estuda, ou se trabalha. Música é um hobby.” Ainda assim, Rita fez tudo o que queria fazer sem se preocupar com críticas nem rótulos.
Quando eu era adolescente, minhas bandas preferidas eram formadas majoritariamente por homens. Ver mulheres como Courtney Love, Melissa Auf der Maur e PJ Harvey tocando instrumentos na MTV mudou a minha vida. Depois de ver o filme Sisters With Transistors em 2020, eu me vi mais uma vez nesse estado de descoberta, como se uma nova porta tivesse se aberto, e pensei que era isso que eu queria fazer. Fazer só por mim e para mim, só pelo prazer de fazer.
Ouvir para não esquecer
Se hoje temos a facilidade de ouvir música com apenas um clique, o fato de a obra de muitas das mulheres pioneiras da música eletrônica não estar disponível online contribui para o apagamento dessas artistas que já são ignoradas pela história da música. Em alguns casos, suas músicas não estão disponíveis nem em formato analógico, tendo sido lançadas em edições limitadas ou não tendo sido preservadas. Por isso, é tão importante a existência de filmes como Sisters With Transistors e livros como Pink Noises: Women on Electronic Music and Sound de Tara Rodgers, mas também de compilações musicais como Aquatic and Other Worlds, disco de estreia da artista venezuelana Oksana Linde, lançado ano passado com músicas compostas por ela nos anos 1980.
Pensando nisso, juntei algumas músicas que consegui encontrar no Spotify dessas artistas de ontem, além das mulheres de hoje que estão continuando o legado delas, numa playlist que compartilho aqui. É fundamental manter viva a memória dessas mulheres para que suas obras cheguem a outras mulheres em todo o mundo.
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🎹 Gostou das fotos que incluí nessa edição? Veja essas e outras nesse álbum no Pinterest.
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Maíra, vim por indicação da news da Lalai e que prazer te ler! Essa edição foi perfeita pra mim, eu exatamente decidi dar uma chance para música eletrônica depois de ler a biografia da Rita, e sua playlist vai ser essencial! =) Um abraço e obrigada por compartilhar seus pensamentos. De uma pessoa que também toca instrumentos pra si mesma.
Caí aqui por uma indicação da Outra Cozinha e foi uma coincidência muito boa, pq estou pensando/pesquisando justamente sobre a relação entre mulheres e música eletrônica. Obrigada pela ótima edição e pela playlist certeira,