No documentário Ryuichi Sakamoto: Coda, acompanhamos o músico em momentos de aparente silêncio no seu apartamento em Nova York: observando a chuva pela janela, sentado no sofá da sala com a cabeça recostada e os pés apoiados numa mesa de centro, comendo frutas e tomando remédios.
As cenas tranquilas no seu apartamento são contrastadas com a cena de uma Nova York barulhenta em que Sakamoto caminha pelas calçadas da cidade, mas é interrompido por uma ambulância.
Em outra cena, Sakamoto está na floresta olhando para ela e concentrado em escutar os seus sons. Ele caminha com o celular e um microfone na mão e diz:
“O mundo está cheio de sons. Normalmente não os ouvimos como música. Mas, na verdade, os sons são bastante interessantes musicalmente. Por isso, eu tenho um grande interesse em incorporá-los ao meu trabalho, misturá-los com instrumentos numa única paisagem sonora.”
Numa entrevista ao jornal português Público, Sakamoto fala sobre a importância do silêncio numa época da história em que a música se tornou mais um produto de consumo:
“Precisamos de silêncio, como na peça [4′33″] que John Cage compôs nos anos 50. (…) Temos que reaprender a ouvir. Saber estar no silêncio, é o princípio.”
A peça do compositor John Cage a que Sakamoto se refere é uma obra experimental de 1952 composta, como diz o título, por quatro minutos e 33 segundos de silêncio. A partitura instrui os músicos a ficar em silêncio pelo tempo de duração da obra. Sem os sons dos instrumentos, o que se ouve durante as apresentações são os sons dos músicos e da plateia se mexendo na cadeira e outros sons ambientes.
No ano anterior, Cage tinha visitado uma câmara anecoica na Universidade de Harvard, onde todos os tipos de ruídos externos são isolados. Lá Cage achou que encontraria total silêncio, mas se surpreendeu ao ouvir dois sons: um agudo e outro grave. Segundo o engenheiro de som, o som agudo vinha do seu sistema nervoso, enquanto o grave vinha da sua circulação sanguínea. A experiência o inspirou a compor 4′33″.
Dialogando com a obra de Cage, Sakamoto criou a sua própria “versão” de 4′33″ em 2021 para o projeto PRSNT, uma compilação lançada pelo selo Modern Obscure Music formada por músicas de vários artistas com cerca de 30 segundos de duração.
O conceito do projeto foi desenvolvido com base num estudo sobre o consumo de música online que revelou que cerca de um terço das pessoas que ouvem música em plataformas digitais passa para a próxima faixa após ouvir os 30 primeiros segundos de uma música.
Com o título silence, a contribuição de Sakamoto, que fecha o disco, são 32 segundos de puro silêncio.
Ao invés de apontar a tecnologia como uma grande vilã, Sakamoto sempre se interessou mais pelas possibilidades que ela oferece. “Não estou dizendo para voltarmos para a natureza ou tempos pré-modernos”, ele diz num vídeo gravado em 1984. “Não estou interessado em ir contra a corrente. O que me interessa é o desgaste da tecnologia, como erros ou ruídos”, acrescenta.
Em outra filmagem de arquivo exibida no filme Ryuichi Sakamoto: Coda, quando o perguntam quais são as vantagens do computador, ele responde: tocar trechos rápidos e difíceis que a mão humana não consegue alcançar.
Apesar de ter estudado música clássica e começado a sua carreira tocando piano, o músico foi um pioneiro da música eletrônica, tendo feito parte da banda de technopop Yellow Magic Orchestra, formada em Tóquio nos anos 1970, que o levou a experimentar o uso de diferentes sintetizadores.
Em 2014, Sakamoto foi diagnosticado com um câncer na garganta, o primeiro que teria, e anunciou que ficaria um tempo afastado da música para se cuidar. Três anos depois, ele lançou async, seu primeiro disco de estúdio após quase uma década trabalhando quase exclusivamente na criação de trilhas sonoras. O disco combina sons acústicos e eletrônicos com gravações de sons ambientes. Sakamoto o definiu como uma trilha sonora para um filme imaginário do diretor russo de cinema Andrei Tarkovsky e diz ter se inspirado na forma como o diretor usava tanto o silêncio quanto os sons da natureza nos seus filmes.
Numa entrevista para a Criterion, ele fala:
“Hoje em dia eu gosto de filmes com bastante silêncio e bastante tranquilidade. Tarkovsky, Robert Bresson, Ingmar Bergman costumam ser bem lentos e não são excessivamente expressivos. Há bastante espaço no meio e assim é possível se aprofundar na linguagem cinematográfica ou na história. Na música, quando temos bastante espaço, podemos ter tempo suficiente para apreciá-la e podemos examinar as cores e formas entre as notas e a profundidade do som. Por isso, acho que é muito importante para mim haver espaço entre os objetos.”
No Japão, de onde Sakamoto vem, existe uma palavra para esse “espaço negativo”: ma. A ideia se aplica não apenas à música e às artes no geral, mas a vários aspectos da vida. É usada, por exemplo, para se referir à pausa que as pessoas fazem num diálogo antes de responder as outras pessoas. Também está presente na arquitetura japonesa.
Entre os vários filmes para os quais Ryuichi Sakamoto compôs a trilha sonora estão O Último Imperador de Bernardo Bertolucci, Merry Christmas, Mr. Lawrence de Nagisa Ōshima, e O Regresso de Alejandro González Iñárritu.
Iñárritu o chamou para fazer a trilha sonora do filme quando Sakamoto ainda estava em tratamento e o músico não conseguiu recusar. A trilha é considerada uma das melhores que ele já fez. Sobre a escolha de Sakamoto para a trilha do filme, Iñárritu disse à NPR que queria alguém que fosse capaz de entender o silêncio:
“Eu acho que os grandes músicos que já existiram entendem que o silêncio é a fonte da música. E eu acho que o Ryuichi é assim.”
Esse ano Sakamoto lançou seu décimo segundo e último disco de estúdio após um segundo diagnóstico de câncer. Entitulado 12, o disco foi gravado numa casa temporária em Tóquio onde o músico ficou hospedado depois de uma longa internação hospitalar. As 12 músicas do disco funcionam como um diário sonoro, cada uma levando no título a data em que foi composta. Nessas músicas é possível ouvir sons ambientes, como um corvo ou os pedais do piano, e às vezes até sua respiração e o silêncio. Sakamoto nos deixou no final do mês passado aos 71 anos.
O som e o silêncio
Trabalhei por mais de cinco anos criando e revisando legendas para a TV e festivais de cinema. Passava muitas horas seguidas com fones de ouvido. Com o tempo, comecei a me preocupar em preservar a minha audição, fazendo exames de controle e investindo em fones com cancelamento de ruído e protetores auriculares.
Durante os primeiros anos da pandemia, li bastante sobre como a nossa forma de perceber os sons mudou durante o isolamento. Nessa época eu comecei o meu próprio diário sonoro, gravando com o app Voice Memos os ronronados dos meus gatos e sons ambientes de uma caminhada no parque ou de trovoadas, que eu não costumava ouvir com muita frequência aqui na Holanda, mas têm sido cada vez mais comuns por causa da mudança climática.
Ano passado me mudei para uma casa no subúrbio de Amsterdam em busca de mais espaço e sempre que preciso ir para as áreas mais centrais da cidade, seja para trabalhar no escritório, fazer compras, ir a um museu e ao cinema ou encontrar pessoas, sinto que estou mais sensível ao barulho. Apesar de Amsterdam ainda ser uma cidade com pouca poluição sonora comparado a outras capitais, os lugares fechados têm estado cada vez mais cheios com filas para tomar café ou comer num restaurante, que eu vejo muito mais como um resultado da falta de “terceiros espaços” fechados num lugar onde faz frio e chove a maior parte do ano do que do tipo de turismo que a cidade atrai.
Desde que saí do Brasil, sempre que eu volto, tenho estado mais atenta aos sons que antes podiam passar despercebidos por mim. Os sons que mais me chamam a atenção geralmente são os de pássaros como o bem-te-vi, ou das cigarras, que eu não encontro na Holanda.
No livro Fifty Sounds (ainda sem tradução no Brasil), a tradutora e escritora britânica Polly Barton escreve sobre o seu processo de aprendizado da língua japonesa no Japão. Gosto particularmente de uma passagem em que ela descreve como foi ouvir os sons das cigarras pela primeira vez, que a lembravam constantemente que ela estava num país estrangeiro (a tradução é minha):
“Com a umidade vieram os sons. De manhã, quando o sol ardia nas minhas janelas sem cortinas, as cigarras começavam, tornando o ar ainda mais denso. Min-min é como o japonês reproduz este canto, o ‘i’ um som alto e vivo, que mais se aproxima com o ‘ee’ em inglês, e essa descrição sempre me pareceu evocativa de uma forma quase extraordinária, talvez porque não temos uma palavra específica para o canto da cigarra em inglês. Na verdade, eu nunca havia estado num lugar habitado por cigarras e fiquei surpresa não apenas pelo volume delas, mas também pela onipresença do som que elas fazem, que mais parece invenção de alguma tecnologia desconhecida do que qualquer coisa que a natureza poderia ter alcançado: talvez alguma ferramenta de construção que eu nunca tinha visto antes, ou a proliferação de sirenes futuristas.”
Jenny Odell escreve no livro How to Do Nothing sobre a sua experiência de assistir à obra 4′33″ de John Cage que eu mencionei anteriormente. Ela diz que, ao sair do teatro, enquanto andava na rua a caminho do transporte público, começou a ouvir todos os tipos de sons – dos carros, passos, vento e ônibus elétricos – de uma forma mais clara e se perguntou como pôde ter vivido numa mesma cidade durante quatro anos e ter andado naquela mesma rua sem ter ouvido nada disso antes.
Nessa tentativa de escutar de uma forma mais atenta para estar mais no presente, me questiono se a minha intenção de ouvir música (podcasts e audiolivros também), ou até mesmo falar, é uma forma quase que desesperada de ocupar todos os espaços de silêncio com som.
Não acho que Cage nem Sakamoto achassem que a solução fosse parar de ouvir música e se isolar de todos os barulhos do mundo. Mas é justamente nessa impossibilidade de uma vida totalmente sem ruído que se torna necessário encontrar momentos de silêncio.
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Vim parar no seu texto a partir da indicação que a Carla (muito curioso ver o comentário dela aqui, em abril, sobre estes pensamentos que apaceram no texto que foi publicado hoje). Sou fascinada com este tema do silêncio e fico colecionando textos, podcast e vídeos sobre isso. Acho que ressoa em algo profundo pra mim, não sei bem explicar. Mas me fascina! E foi muito bom cruzar com seu texto. Já tinha visto de relance este documentário nas indicações da Netflix, mas não tinha parado pra ver. Vou buscar depois.
Que texto precioso, Maíra. Por um acaso estou as voltas com uma faixa do músico Jóhann Jóhannsson chamada 'A Song for Europa', em que uma voz feminina monocórdia e robótica recita números aleatórios em alemão, até que entra o som melancólico de um instrumento de cordas, que emociona justamente pq tem variação, pq propõe mais alternância entre silêncio som do que a voz mecânica. Tenho rabiscado algumas coisas sobre o efeito desse contraste, ainda sem saber aonde quero chegar, e vou guardar essa sua newsletter porque é uma referência maravilhosa