Amanhã faz um mês que minha vida mudou drasticamente. Numa terça-feira como qualquer outra, fui deitar para dormir, mas alguns minutos depois, levantei da cama num susto. Vincent, meu gato, teve uma crise de falta de ar e teve que ser levado às pressas para a emergência. Lá recebemos a notícia de que ele precisaria ficar internado e talvez não sobrevivesse àquela noite.
Até a tarde daquele dia, eu tinha um gato saudável e jovem, que ainda não tinha completado nem 5 anos. Fiquei pensando nas palavras que abrem o livro O ano do pensamento mágico da escritora Joan Didion: “A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.”
Meu gato sobreviveu àquela noite e voltou para casa depois de dois dias de internação, mas foi diagnosticado com uma doença genética grave de coração. No relatório médico, eu lia e relia as palavras “tempo médio de 3 a 6 meses de vida”1.
Segundo o médico, teremos sorte se o Vincent durar um ano. Não há nada a fazer e não podemos prever quando ele nos deixará, mas enquanto ele estiver aqui conosco, continuamos a dar os medicamentos para que ele possa levar uma vida minimamente tranquila, além do máximo de carinho que podemos.
Esses dias, pensei bastante no documentário Heart of a Dog, da cantora, compositora, artista experimental e também realizadora de filmes Laurie Anderson. Nesse filme, Laurie reflete sobre a morte da mãe, do amigo Gordon Matta-Clark e, acima de tudo, da sua cachorra Lolabelle, a estrela do filme.
A linha do tempo do filme começa em 2001, após os ataques terroristas às Torres Gêmeas, quando Laurie decide sair da cidade de Nova York e levar Lolabelle para as montanhas numa espécie de experimento. Laurie tinha ouvido dizer que os cachorros da raça rat terrier conseguem entender cerca de 500 palavras e queria descobrir quais eram.
Ela conta a trajetória dessa cachorra, uma cachorra “de shopping”, desde os seus antigos donos, uma família cujo os pais se divorciaram, até os seus últimos anos de vida, quando Lolabelle começou a perder a visão.
Nessa época, Laurie se dedicou a dar a melhor vida que podia à cachorra. A treinadora de Lolabelle ensinou a ela atividades artísticas como pintar, criar esculturas e tocar piano. Lolabelle chegou a fazer concertos beneficentes para várias organizações de animais. A cachorra acompanhava Laurie aos estúdios e inúmeros outros lugares, e também acompanhou Lou Reed, seu parceiro.
Quando Lolabelle fica bem doente e é internada, os médicos falavam sobre sacrificá-la, mas Laurie e Lou Reed decidem levá-la de volta para casa e passam três dias com a cachorra até ela morrer. Laurie então diz (a tradução e os grifos são meus):
“Ficamos com ela durante três dias, conforme sua respiração desacelerava e então parou. Aprendemos a amar Lola, assim como ela nos amou. Com uma ternura que não imaginávamos que tínhamos.”
Na casa onde cresci, nunca tivemos bichos de estimação. Não era falta de vontade minha nem do meu irmão, mas enquanto minha mãe dizia que acabaria sobrando para ela cuidar e que ela não tinha tempo para isso, meu pai por sua vez não queria que estragassem o jardim nem os móveis da casa.
Adotei meus primeiros bichos já prestes a fazer 30 anos, dois gatos de uma só vez, e acho que por um momento pensei que eles viveriam para sempre ou, pelo menos, que me acompanhariam por muito tempo ainda.
Nos dias que o Vincent passou internado, senti um imenso vazio em casa. Jean Cocteau diz que amava os gatos porque gostava da casa dele e, aos poucos, os gatos se tornam a alma visível da casa. Eu acho que todo bicho é a alma da casa onde vive.
Durante 49 dias após a morte de Lolabelle, um período de transição entre a nossa vida passada e a vida futura a que O Livro Tibetano dos Mortos se refere como “bardo”, Laurie Anderson mantém um diário do que está acontecendo dentro e fora da sua vida. Esse também é um diário do seu próprio processo de luto.
Ver Heart of a Dog é como ouvir esse diário sendo narrado por Laurie, acompanhado de imagens, incluindo dos seus arquivos pessoais, imagens gravadas com o seu celular e também ilustrações feitas por ela.
A Laurie tem esse jeito sensível de falar sobre a tristeza e a morte. Na sua carta de despedida a Lou Reed, ela escreveu sobre a época em que ele foi diagnosticado com câncer no fígado e diabates avançada e teve que fazer tratamento. Um dos ensinamentos do professor de meditação dos dois é que eles precisavam tentar dominar a habilidade de “se sentir triste sem de fato estar triste”, uma frase que Laurie também cita no filme.
A morte de Lou Reed não é mencionada em nenhum momento do documentário, mas pode ser sentida, principalmente numa cena em sépia dos dois juntos na praia.
Heart of a Dog é um filme sobre o luto e uma pessoa tentando lidar com ele, mas é também sobre a vida.
Na carta que a Fiona Apple escreveu quando precisou cancelar a turnê que faria na América do Sul porque sua cachorra estava doente, ela disse (a tradução e os grifos são meus):
“Muitos de nós hoje em dia tememos a morte de alguém que amamos. É a horrível realidade da Vida que sempre faz nos sentirmos aterrorizados e sozinhos. Gostaria que também pudéssemos aproveitar o tempo que vem junto com o fim dos tempos.”
Nos primeiros dias após a volta do Vincent para casa, quando ainda tínhamos que evitar que ele subisse as escadas, montamos acampamento no sofá da sala e passamos os dias vendo vídeos no YouTube pela TV. Apesar da tristeza e da constante preocupação que tenho sentido, vou lembrar desses momentos como alguns dos mais felizes que já tive com ele.
Quando o sol aparece, gosto de o observar no único quadrado de luz dentro de casa. Nos dias nublados, vejo-o se aninhar perto do aquecedor. Na hora dos remédios, damos petiscos para ele (e também para a gata) para tentar tornar o momento menos desagradável para todos nós. Lembro da
do dizendo que a vida é muito curta para não agradar um gato, e essas palavras nunca fizeram tanto sentido como agora.2Estou constantemente tentando me acostumar com o fato de que meu gato não tem mais o mesmo ritmo de antes. Mas penso no privilégio que é passar o tempo com esses seres, de amá-los e ser amada de volta. A vida é aqui e agora. Esse é o único tempo que temos. E acho que aos poucos tenho aprendido a me sentir triste sem estar triste.
Freddie Mercury teve muitos gatos ao longo da sua vida e foi um verdadeiro “louco dos gatos”. De acordo com seu assistente Peter Freestone, quando estava em turnê, o artista ligava para casa e pedia a quem estivesse tomando conta dos gatos que os colocassem no telefone para que ele pudesse falar com os felinos.
Junto com a sua banda Queen, ele chegou a compor uma música para a sua gata Delilah, aparentemente a sua gata preferida.
Quando ele já estava bem doente com complicações causadas pela AIDS, passar o tempo com os gatos era uma das únicas coisas que o fazia se sentir bem e foi o que ele quis deixar registrado com a música que leva o nome da gata tricolor.
You're irresistible
You make me smile
When I'm just about to cry
You bring me hope
You make me laugh and I like it
Freddie Mercury não foi o único a compor uma música para o seu bichinho de estimação. Paul McCartney, por exemplo, compôs Martha My Dear em homenagem à sua cachorra sheepdog de mesmo nome.
Para essa edição da newsletter, criei uma playlist apenas com músicas compostas para algum bicho de estimação. Conhece alguma que eu deixei de fora? Me conta respondendo ao e-mail ou deixando um comentário.
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Não revia o relatório desde a semana que eu o recebi e podia jurar que essas palavras estavam destacadas em vermelho. Como escrevi na última newsletter, nossa memória está constantemente recriando a realidade
Recomendo o post da Carla para quem tem vontade de trocar a alimentação dos gatos por uma alimentação natural, mas não sabe por onde começar
Que lindo post! Eu vi uma frase uma vez que dizia mais ou menos "o luto é o preço que pagamos por termos coragem de amar os outros" e acho que resume muito o que é ter um animalzinho de estimação. É para quem tem coragem. <3
Que texto.... Estou profundamente tocada. Não tem um dia sequer que eu não pense na morte de Frida e Alec, e também em como será esse processo. Talvez por isso tento fazer de nossos momentos os melhores possíveis. A certeza da morte me faz querer honrar a vida em sua plenitude.
Que você e Vincent tenham muitos bons momentos cheios de agrados.