Em dezembro de 2021, voltei ao Brasil depois de quase dois anos sem ir por conta da pandemia. Eu nunca tinha ficado tanto tempo sem voltar e, durante esse tempo, tanto minha mãe quanto meu pai passaram por cirurgias que deixaram marcas visíveis, e outras nem tanto, na vida que levariam dali para a frente. Eu não pude estar com eles nessa época, então voltar seria uma forma de encarar de perto tudo de uma só vez.
Meus pais tinham se divorciado um pouco antes do início da pandemia e colocaram à venda a casa onde vivi a maior parte da minha vida. Além de eu não ter tido a chance de me despedir dessa casa, voltar também significaria que eu precisaria decidir em poucos dias o que fazer com tudo que acumulei durante toda a minha vida no Brasil: me desfazer ou tentar fazer cabê-las numa única mala para trazê-las para a Holanda.
Eu acabei caindo doente e, mesmo que o teste de farmácia tenha dado negativo, até hoje não sei se foi covid, H1N1 ou o peso de todas essas coisas juntas. Após 10 dias de cama, quando eu já não tinha mais sintomas, meu parceiro e eu decidimos fazer uma viagem curta de carro para dois destinos de praia. Essa seria a nossa primeira viagem de carro em nove anos de relacionamento, já que não temos permissão para dirigir na Europa, e eu estava bem animada. Preparei uma playlist para a viagem que incluía quase que exclusivamente músicas do Neil Young e da Joni Mitchell. Durante o isolamento da pandemia, as músicas dos dois eram algumas das poucas coisas que conseguiam acalmar minha ansiedade.
Infelizmente choveu todos os dias da viagem e nós ficamos entocados lendo e vendo filmes. Quando a chuva dava uma trégua, fazíamos passeios de carro por estradas enlameadas, sempre ao som da playlist que eu tinha criado.
Lembrei bastante dessa viagem enquanto, mês passado, ouvia o audiolivro Joni Mitchell: In Her Own Words, composto por conversas entre a cantora Joni Mitchell e a jornalista Malka Marom que aconteceram em diferentes ocasiões entre 1973 e 2012. Joni e Malka são amigas de longa data e conversam sobre temas bem pessoais da vida de Joni: sua infância com poliomielite, seus relacionamentos, sua relação com a mãe e os palcos, além do processo criativo por trás de músicas e discos importantes da cantora.
Em 1964, Joni, ainda com 21 anos de idade, tinha saído da casa dos pais em Saskatoon no Canadá e ido para Toronto para tentar carreira na música. Ela descobre que está grávida do ex-namorado, mas é abandonada por ele.
Quando Malka a pergunta o que a motivou a começar a se apresentar nos palcos, Joni responde:
“The writing of my own songs came out of the trauma of my being an unwed mother and being destitute. I mean destitute in a strange city and pregnant, and living in a 15-dollar-a-week room.”
No ano seguinte, Joni se casou com o cantor Chuck Mitchell, de quem herdou o sobrenome, segundo ela numa tentativa de manter o bebê que tinha dado à luz. O casamento, contudo, se tornou um relacionamento abusivo. Chuck, que vinha de uma família de professores e tinha bacharelado em literatura, a chamava de burra e a forçava a ler livros. Joni confessa a Malka que compunha à noite escondida do marido porque ele a ridicularizava. A cantora acabou dando a filha para adoção e se separando de Chuck em 1967.
Foi nessa época que Joni compôs Both Sides, Now, que viria a ser uma das suas músicas mais famosas e regravadas. Ela explica no livro:
“‘Both Sides, Now' was triggered by a broken heart, the loss of my child. In this three-year period of childhood's end, I'd come through such a rough, tormented period as a destitute, unwed mother. It was like you killed somebody, in those times.”
Joni diz que a música teve como inspiração o livro Henderson the Rain King de Saul Bellow. Ela conta para Malka que leu o livro numa viagem de avião, provavelmente por causa do ex-marido, e se identificou com o protagonista que, assim como ela, estava num avião indo para a África para fugir do seu casamento. Joni então começou a compor naquela hora:
“‘Both Sides, Now' was a meditation on fantasy and reality. Half childhood, looking at the clouds with childlike wonder. I never felt it was a very successful song. Because it was such a big meditation, it seemed to just scrape the surface of it. But in retrospect, in its generalness, there was much that people could read into it. It became very profound in its ambiguity to a lot of people.”
Eu estava ouvindo essa mesma música na minha viagem para a praia, tentando fugir da minha própria realidade, e achando irônico que chovia enquanto escutava os seguintes versos:
Bows and flows of angel hair
And ice cream castles in the air
And feather canyons everywhere
I've looked at clouds that way
But now they only block the sun
They rain and they snow on everyone
So many things I would have done
But clouds got in my way
Malka revela que ouviu Both Sides, Now na noite em que conheceu Joni em novembro de 1966 e a música mudou a sua vida. Seu casamento também não andava bem e, essa noite, ela decidiu pegar o carro para andar pelas ruas de Toronto até chegar ao café The Riverboat, onde Joni se apresentava.
Naquele mesmo ano, Joni compôs a música Urge for Going a pedido do músico Tom Rush. Num show em Detroit, ela apresentou a música:
“In Saskatoon or in Saskatchewan – or on the prairies for that matter, that includes the American prairies - the winters and the summers are very radical with the temperature varying as much as 150 degrees in a season. So when the winter sets in it really sets in and drops down to about 50 below and all the people sit around and complain a lot, but they never really do anything about it. Some people think that they’re frozen stiff but that’s not really true. They just complain and say “I wish I was in Florida" and the farmers and the people who are wealthy enough do go down to Florida or some island for the winter. But then the rest of us poor old common folk up there have to sit and suffer through. And that was what I had in mind when I wrote this song but I think it means different things to different people.”
A vontade de ir embora ainda a perseguiria por muito tempo. No final dos anos 1970, Joni sentia-se infeliz no seu relacionamento com o músico Graham Nash e resolveu dar um tempo da música e viajar para a Europa na companhia da sua amiga Penelope e um instrumento conhecido como saltério dos Apalaches. Da Europa, Joni enviou um telegrama para Nash declarando o fim do relacionamento deles.
Na ilha de Creta, na Grécia, Joni e Penelope juntaram-se a uma comunidade hippie que vivia num conjunto de cavernas na vila de pescadores de Mátala. Joni começou a compor sobre as suas experiências durante a viagem, que mais tarde deram origem ao disco Blue. Foi lá onde ela conheceu Cary Raditz, um americano que a inspiraria a compor Carey.
Joni queria escapar dos seus problemas, mas percebeu que não era possível. Então ela se via entre a vontade de ficar e voltar para casa.
Oh, you know it sure is hard to leave here, Carey
But it's really not my home
My fingernails are filthy
I got beach tar on my feet
And I miss my clean white linen
And my fancy French cologne
Joni e Penelope se separaram em Mátala e Joni passou o resto da viagem sozinha. A cantora ainda iria para a Espanha e a França. Em California, ela canta:
Sitting in a park in Paris, France
Reading the news and it sure looks bad
They won't give peace a chance
That was just a dream some of us had
Still a lot of lands to see
But I wouldn't wanna stay here
It's too old and cold and settled in its ways here
Lançado em 1971, o disco Blue é como se fosse um diário das suas viagens, carregado de uma profunda melancolia que está presente também no título. O disco abre com All I Want, cujo os primeiros versos são:
I am on a lonely road and I am traveling
Traveling, traveling, traveling
Looking for something, what can it be?
Nas suas viagens, Joni se sente solitária procurando algo que não sabe bem o que é. Apesar de ter nascido no Canadá, foi a Califórnia que Joni escolheu como casa, mesmo que o lugar a traga tristeza.
Oh, it gets so lonely
When you're walking
And the streets are full of strangers
All the news of home you read
Just gives you the blues
É quando ela pensa que está na hora de voltar.
Oh, but California
California, I'm coming home
I'm going to see the folks I dig
I'll even kiss a Sunset pig
California, I'm coming home
Na música River, a perspectiva é outra. Como muitos imigrantes que, na época do Natal, sentem falta dos lugares onde cresceram, aqui Joni sente falta do cenário gelado do seu país de origem, onde neva e as pessoas patinam nos rios congelados.
Oh, I wish I had a river I could skate away on
But it don't snow here
It stays pretty green
I’m gonna make a lot of money
Then I'm gonna quit this crazy scene
Lendo sobre a sua história, descubro que a primeira música que Joni escreveu, Day After Day, também foi composta em trânsito, na sua viagem de trem de mudança para Toronto que durou três dias.
Joni sempre foi uma mulher livre, mas que parecia estar constantemente no entre: entre o frio do Canadá e o calor da Califórnia, entre pessoas e ao mesmo tempo solitária, entre partir e voltar. Uma condição em que muitas pessoas que deixam as suas cidades natais já se encontraram pelo menos uma vez. Não se pertence mais ao lugar que deixou, nem ao lugar onde se passa a morar. E talvez seja por esse motivo que Joni se sinta tão confortável nesse não-lugar que são as estradas, os trens, aviões, rios e lagos.
Além do Spotify
Ano passado, Joni Micthell tirou as suas músicas do Spotify em apoio ao cantor Neil Young. A decisão dos dois foi uma medida de protesto contra o podcast do apresentador americano Joe Rogan, que vinha espalhando fake news sobre a vacina da covid.
Já não é de hoje que muitos músicos se declaram contra a plataforma de streaming. Os discos da Joanna Newsom até hoje não estão disponíveis lá. O Radiohead levou bastante tempo para disponibilizar a sua discografia após várias críticas à plataforma.
Ainda uso o Spotify pela praticidade de encontrar tudo num mesmo lugar. Recentemente também comecei a usar o YouTube Music, mesmo sabendo que não é a melhor alternativa.
Na busca de outras opções, além de comprar alguns discos em formato digital, tenho usado o Bandcamp, uma plataforma de venda e streaming de música. Lá é possível tanto ouvir música gratuitamente quanto comprar discos e faixas separadas e dar gorjetas aos artistas, que têm a liberdade de fazer o upload das suas próprias músicas e escolher o preço de venda. A plataforma ainda é usada em grande parte por artistas independentes, mas também é possível encontrar discos de artistas como a Björk, que disponibilizou toda a sua discografia na plataforma em 2020, anunciando que o valor arrecadado com as vendas seria doado para o Black Lives Matter UK.
O Bandcamp ainda conta com o Bandcamp Daily, uma seção editorial com artigos de música, que é um ótimo espaço para descobrir novos artistas de vários lugares do mundo.
Outras palavras sobre (não) pertencimento
“[N]unca voltarei a morar na cidade onde nasci. Levo seis anos completos vivendo em Curitiba. Nem eu acredito que já passou tanto tempo. Antes disso, São Paulo, São Luís, Florianópolis e São Luís. Com um pulo em Santiago nesse meio tempo. Como bell hooks em cidades estadunidenses, tentei que cada uma dessas cidades fosse o meu lugar no mundo. Pra ser sincera, eu ainda não sei se Curitiba é esse lugar. Tenho uma tendência pessimista de acreditar que esse lugar nem existe mais. Melhor me aquietar do que passar a vida toda procurando. Nem sei se acredito no que acabei de escrever.”
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nesse texto sobre o livro Pertencimento de bell hooks“Enquanto imigrante, às vezes vejo-me neste lugar nada-comum e sem muita identificação com as pessoas ao meu redor. Para minha sorte, convivo com outros expatriados e existimos bem com nossas diferenças, tendo o fato de não termos nascido aqui como a cola que nos mantém conectados. Estar neste lugar de diferença me fez ignorar preconceitos e resoluções pregadas durante anos na minha infância e adolescência. Em outras palavras, me ajudou a ‘normalizar’ qualquer passo contrário às convenções sociais.”
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nesse texto sobre o show de Fever Ray que ela assistiu“Tenho uma casa na Holanda, mas nem sempre me sinto em casa na Holanda. Dia desses uma holandesa perguntou do que mais sentíamos falta dos nossos países, tirando família e amigos. Um americano respondeu “dos refis de refrigerante nos restaurantes”. Achei curioso e fiquei pensando sobre isso. Para além das coisas grandes há também a saudade das coisas miúdas, dos detalhes, da coca-cola infinita para ele, e para mim? Nem lembro o que falei. Sinto falta da comida, do idioma, de entender os códigos culturais, de saber navegar em águas conhecidas. Mas aí lembro da frase, para permanecer na mesma metáfora, de que ‘um barco ancorado é seguro, mas não é para isso que os barcos foram feitos.’”
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nesse texto sobre seu primeiro ano na HolandaUm abraço e até a próxima,
Maíra
Eu não conheço muito joni Mitchell, seu texto me fez ter vontade de ouvi-la mais. Lembrei que em “this is us”, uma série que eu adorava, uma das personagens era muito fã dela.
Obrigada pela citação.
Um beijo,
Buca