Em 1989, após gravar um disco dentro de uma cisterna subterrânea na cidade de Port Townsend, em Washington, junto com os músicos Stuart Dempster e Panaiotis, Pauline Oliveros criou o termo Deep Listening.
Anos antes, Pauline havia publicado Sonic Meditations, um conjunto de breves instruções escritas para escutar e criar sons. Pensadas para serem realizadas em grupo, essas meditações eram voltadas para qualquer pessoa que quisesse participar, com ou sem experiência musical.
Dois anos após o lançamento do disco Deep Listening, Pauline organizou seu primeiro retiro no Rose Mountain Retreat Center, em Las Vegas, Novo México. O retiro durou uma semana e propôs a quem participasse se dedicar à escuta durante 24 horas por dia, incluindo durante o sono. Esse seria o primeiro retiro que Pauline organizaria ao longo de um período de 10 anos. Foi nesses retiros que ela desenvolveu as práticas de Deep Listening que seriam publicadas num livro de mesmo nome em 2005.
Pauline, que foi uma das pioneiras da música eletrônica, começou a investigar os processos e estratégias da atenção humana quando percebeu que muitos músicos não escutavam o que eles mesmo tocavam, mas apenas ouviam. Nas suas palavras: “Ouvir é o processo físico que permite a percepção. Escutar é dar atenção ao que é percebido tanto acústica quanto psicologicamente.”
Ao não escutar os sons à nossa volta, Pauline acreditava que perdemos a conexão com o nosso ambiente, algo que tem se tonardo cada vez mais comum nos ambientes urbanos.
De acordo com Pauline, Deep Listening é “uma prática que se destina a ampliar e expandir a consciência sonora em quantas dimensões de consciência e dinâmica atencionais forem possíveis para os seres humanos.”
Pauline Oliveros dividia a atenção em dois tipos: a atenção global e a atenção focal. Enquanto a primeira é inclusiva e imparcial, a segunda é exclusiva e limitada. As práticas da escuta profunda nos ajudam a desenvolver a atenção global a mais de uma dimensão sonora em paralelo ou simultaneamente.
Um dos exercícios incluídos nas práticas da escuta profunda é manter um diário de escuta em que os participantes são encorajados a escrever dentro e fora das aulas. Para Pauline, é importante registrar tanto os sons da nossa experiência interna a que estamos familizaridos e os sentimentos que eles provocam na gente, quanto os sons da nossa paisagem sonora externa, como os sons do trânsito, os barulhos que ouvimos num café e o ruído de várias vozes simultâneas. Dessa forma, nos colocamos no centro do ambiente, criando uma relação com tudo o que acontece à nossa volta.
“Mesmo que pareça que não vale a pena escrever alguma experiência, é possível que sua perspectiva mude mais tarde, especialmente no contexto de muitas experiências diferentes registradas ao longo do tempo. Permita que seu eu crítico interior relaxe e acalme-se enquanto tem a oportunidade de registrar suas experiências sem censura. Uma palavra, um fragmento ou um parágrafo pode mais tarde ativar sua memória ou sua imaginação e gerar uma enorme quantidade de informações.”
(Pauline Oliveros, Deep Listening; a tradução é minha)
Pauline defendia que os sons carregam inteligência e, por isso, ativam ideias, sentimentos e memórias. Podemos acessar novas memórias através dos sons.
Num capítulo chamado Listening Questions, Pauline propõe uma lista de perguntas relacionadas aos sons, tais como:
Que som faz você se lembrar de casa?
Qual é a paisagem sonora do seu bairro?
São perguntas para as quais eu não tinha uma resposta imediata e me fizeram parar para refletir enquanto lia.
No livro Arquivo das crianças perdidas de Valeria Luiselli, acompanhamos um casal em crise numa viagem de carro pelos Estados Unidos com seus dois filhos pequenos. Ela, jornalista e narradora da primeira parte da história, e ele, especialista em acustemologia, trabalharam juntos num projeto que tinha como objetivo gravar a paisagem sonora de Nova York, incluindo não apenas os sons urbanos, mas também todas as línguas faladas na cidade ao longo de quatro anos. À medida que a viagem, que talvez seja a última da família, se aproxima, a narradora percebe que não tem um registro da sua própria paisagem sonora familiar e lista os sons (e silêncios) do dia a dia dessa família num longo trecho sem pausas, que aparece cortado a seguir:
“Agora que estávamos deixando para trás um mundo inteiro, um mundo que havíamos construído, praticamente não havia registro, nenhuma paisagem sonora de nós quatro, mudando no decorrer do tempo: o rádio no início da manhã e as últimas reverberações de nossos sonhos amalgamando-se com as notícias de crises, descobertas, epidemias, intempéries inclementes; o moedor de café, grãos duros tornando-se pó; a faísca do fogão acendendo e explodindo em um anel de fogo; o gorgolejar da cafeteira; os demorados banhos de chuveiro que o menino tomava e os insistentes chamados do pai, "Vamos, apresse-se, vamos chegar atrasados"; as conversas pausadas e quase filosóficas entre nós e as duas crianças a caminho da escola; os passos lentos e cuidadosos com que o menino perfaz os corredores vazios da escola, matando as aulas; o guincho metálico dos metrôs parando de repente, e as viagens quase sempre silenciosas nos vagões de trem durante nossos deslocamentos diários para gravações de campo, na área central da cidade ou pelos distritos; o zumbido de ruas apinhadas onde meu marido procurava captar sons desgarrados com o microfone boom enquanto eu abordava estranhos com meu gravador portátil, e a torrente de todas as suas vozes, seus sotaques e histórias; o riscar do fósforo que acendia o cigarro do meu marido e o longo chiado de sua primeira tragada, puxando a fumaça por entre dentes cerrados, depois o lento alívio da exalação; o estranho ruído branco que grupos numerosos de crianças produzem nos parquinhos — um vórtice de histeria, um fervilhar de gritos — e as vozes perfeitamente distintas de nossos dois filhos no meio […]. O som de tudo e de todos que um dia nos circundaram, o barulho com que contribuímos e o silêncio que deixamos para trás.”
(Valeria Luiselli, Arquivo das crianças perdidas; tradução de Renato Marques)
Gosto dos diários sonoros de viagens que Marc Weidenbaum compartilha no blog Disquiet porque me dão uma nova dimensão de um lugar. Mas quando viajamos para um lugar diferente, é comum estarmos mais atentos ao ambiente à nossa volta, incluindo aos sons que fazem parte dele. Em compensação, estamos tão inseridos na nossa paisagem sonora interna e externa, que é difícil ouvir os sons cotidianos, e muitas vezes eles passam despercebidos.
Enquanto me preparava para escrever esse texto, voltei aos meus diários e raramente encontrei passagens referentes aos sons que ouvi. Por isso, decidi criar meu próprio diário de escuta dos sons que escutei em casa no decorrer do último verão. O exercício me fez prestar atenção pela primeira vez aos sons do bairro no subúrbio onde estou morando há um pouco mais de 1 ano e 6 meses.
Passei alguns dias dormindo no quarto-de-visitas-escritório por conta de uma tosse alérgica que não deixava nem a mim nem ao meu parceiro dormir. A janela do quarto dá para a parte da frente de casa, diferente do nosso quarto, que dá para o quintal. Além de acordar com a luz do sol, acordei com outros sons, como o barulho dos pássaros que a essa hora do dia parecem se reunir ali. Fico pensando por que sonhamos mais quando dormimos num lugar diferente.
Falando em pássaros, tenho dificuldade de reconhecer as espécies que encontro aqui e os sons que elas fazem, com exceção de dois tipos de pássaros que aparecem com frequência no entorno da minha casa: os magpies e os periquitos. Esses últimos certamente não são nativos da Holanda. No final da primavera, é comum vermos os magpies fazerem ninhos nas árvores do vizinho e piarem alto em uníssono quando avistam um gato andando pelas cercas das casas. Quando ouço o barulho, já imagino que tem algum gato à solta.
O gato da casa de trás vem nos visitar com frequência e chega miando como se anunciasse sua presença.
Durante o dia, abrimos a porta que dá para o quintal para o ar circular e com o ar entram os insetos: na maior parte do tempo, moscas e abelhas que são enganadas pelo teto de vidro da sala de jantar e teimam em sair pelo teto em vez da porta que ainda está aberta. Elas passam horas zumbindo e batendo contra o vidro. Me pergunto para onde elas vão nos meses frios.
Tarde da noite, quando estou lendo no quarto, consigo ouvir o som do sinal de cruzamento para pedestres cegos que eu não consigo ouvir durante o dia.
Também à noite, quando faz silêncio, às vezes consigo ouvir o som de um trem passando na estação que fica a cerca de 650 metros de casa.
O som do ventilador na hora de dormir, além de embalar meu sono, me transporta para as noites de calor do Rio de Janeiro. Meus sonhos também mudam de cenário.
Depois de muitos anos morando num lugar que chove com frequência, você acaba não ouvindo mais o som da chuva. Em compensação, nos meses de calor, após dias seguidos sem chuva, o som dela é muito bem-vindo.
Junto com o calor, vem também uma música que parece sair de uma caixinha de música. Depois de muitos dias tentando descobrir de onde a música vinha, vi passar a van branca que vende sorvetes para as crianças do bairro como nos filmes estadunidenses. Antes de conseguir vê-la, comecei a brincar que a música era coisa de algum filme de terror. Foi assim que, mais tarde, nós a apelidamos aqui em casa de “a van do Palhaço It”.
Ouço o som de vizinhos conversando ao longe, homens e mulheres. Parece um grupo grande. Estão felizes e dão risadas. Não consigo identificar o que falam, mas acredito que seja em holandês pelo tom das vozes. Acho que aprender um idioma também é aprender a reconhecer o tom que os falantes desse idioma usam.
Ouço um cachorro latir. É curioso, mas é muito raro ouvir latidos de cachorro na Holanda. Seriam os latidos universais ou os cachorros holandeses latem com um sotaque típico daqui? Minha mãe me disse uma vez que meus gatos não miam da mesma forma como o gato dela miava no Brasil.
Acordei com o barulho de vento forte e logo depois recebi no celular um alerta vermelho de ventania. Ouvir o som do vento junto com o da chuva dava a impressão de que eu estava dentro de uma máquina de lavar.
Após a ventania, ouço os passarinhos cantando alto como se estivessem felizes. Foi a primeira vez que eu os ouvi cantar dessa forma.
O som de crianças brincando é constante. Moro num bairro com muitas escolas. As crianças holandesas brincam ao ar livre faça chuva ou faça sol, faça frio ou faça calor. Mas, nessa época do ano, o coro parece mais forte.
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Verdade. Quando visito um lugar novo, parece que os sentidos se aguçam, vemos e ouvimos mais. Talvez seja algo enraizado, do tempo em que precisávamos de todos os nossos sentidos para nossa sobrevivência. Reconhecer o território. Por outro lado, reconhecer os sons do nosso dia-a-dia pode ser muito reconfortante.