Perder-se também é caminho
“Andava olhando os edifícios sob a chuva, de novo impessoal e onisciente, cego na cidade cega; mas um bicho conhece a sua floresta; e mesmo que se perca — perder-se também é caminho.”
(Clarice Lispector; A cidade sitiada)
Chego à cidade do Porto, no norte de Portugal, no final de uma tarde de dezembro, a poucos dias do Natal. Deixo a mochila no quarto do hotel, vou à Livraria Bertrand antes de fechar, compro o novo livro recém-lançado da escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, escolho um lugar para jantar, passo em frente ao Cinema Trindade para saber o que está em cartaz, volto ao hotel para descansar.
Gosto de visitar a cidade porque, entre outros motivos, é um lugar que eu já conheço. Além de fazer esse caminho sem precisar do Google Maps, não sinto a obrigação de visitar museus nem atrações turísticas. Encontro conforto no conhecido.
A gente conhece bastante de uma cidade caminhando.
Nunca fui uma flâneuse. Vivi a maior parte da minha vida no subúrbio, num lugar que não foi projetado para as pessoas caminharem, o que podia ser percebido na presença de calçadas irregulares (ou a falta total delas) e no número reduzido de sinais e faixas de pedestres. Hoje eu tenho pressa.
Um dos maiores medos da minha viagem ao Japão era ficar sem o celular e me perder enquanto eu estivesse sozinha. Eu contava à minha psicóloga que me imaginava perdida em meio a uma multidão sem conseguir me comunicar e sem saber voltar para o hotel.
Pouco antes da viagem, fui trocar a bateria do meu celular que já não durava mais nada. O atendente da loja pediu que eu voltasse em 2 horas para buscar o telefone.
Naquele momento, pensei o que eu faria nas próximas 2 horas sem meu telefone para me guiar. Eu estava longe de casa e incomunicável.
Amsterdã não é uma cidade fácil de conhecer. As ruas estreitas, canais, pontes e prédios de tijolos, todos muito parecidos, são um convite para a gente se perder.
Além disso, a própria geografia da cidade é um labirinto. Desde que mudei para os arredores da cidade há 3 anos, me sinto cada vez mais perdida quando vou ao centro.
“Durante os três dias que passou em Amsterdã, ficou perdido. O plano da cidade é circular (uma série de círculos concêntricos cortados por canais, uma emaranhado de centenas de pontes pequenas, uma conectada a outra e depois outra, como se não tivesse mais fim), e não é possível simplesmente ‘seguir’ uma rua como em outras cidades. Para chegar a um determinado lugar, é preciso saber para onde está indo.”
(Paul Auster; The Invention of Solitude, em tradução livre)
Ao sair da loja, fui caminhando por ruas que eu conhecia até que em algum momento decidi fazer um desvio e entrar numa rua pela qual eu não me lembrava de ter passado antes. Enquanto eu ia andando, tentava prestar atenção a possíveis pontos de referência para conseguir voltar. Foi quando cheguei a uma rua que eu conhecia. Eu lembrava que o museu da fotografia não ficava longe dali e decidi caminhar até lá. Fazia anos que eu tinha visitado o museu e tinha uma exposição em cartaz que eu queria ver, mas nunca encontrava tempo. Visitei o museu, parei para almoçar num restaurante de ramen e fui seguindo o caminho de volta para a loja. Não me perdi.
“Saí do consultório e procurei imediatamente a praia, com a necessidade de me situar. Quando cheguei à beira da areia logo lembrei que a cidade tem um contorno e que ao margeá-lo sempre chegarei até minha casa, um alívio que tentei explicitar ainda durante a consulta, já preocupada com o momento de partir, mas que à doutora só havia provocado um silêncio um pouco mais prolongado.”
(Paloma Vidal; Mar azul)
Me sinto frustrada quando percebo que não sei mais andar em lugares no Rio que eu antigamente conhecia.
Na minha última ida à cidade para o funeral do meu pai, peguei um quarto de hotel no bairro onde trabalhei por anos e sabia andar de olhos fechados. Precisei pedir informação na rua quando percebi que não sabia para que lado ficava a estação de metrô. Eu não queria tirar o celular da bolsa só para isso.
Depois de alguns dias hospedada ali, eu já fazia o caminho no automático. Eu até podia dizer que era ali que eu morava.
Às vezes, eu decidia me aventurar por novos caminhos que me levavam a lugares que um dia conheci. Nesses lugares, eu encontrava a pessoa que um dia eu já fui.
As fotos que acompanham esse texto foram todas tiradas por mim no Porto com uma Olympus PEN E-P7.
A caminho de casa
Depois do seu expediente de trabalho, a faxineira Khadija adormece no último metrô de volta para casa e acorda na estação final. Sem dinheiro para táxis, ela não tem outra opção a não ser atravessar a cidade a pé.
Essa é a história de Trópico Fantasma, filme do diretor belga Bas Devos.
Na sua longa odisseia de volta para casa, Khadija interage com as pessoas que encontra pelas ruas desertas de Bruxelas. É através dessas interações que conhecemos um pouco mais sobre ela e seu passado. Em 20 anos de trabalho, isso nunca aconteceu com ela, como conta ao segurança de um centro comercial que está para fechar.
Mesmo assim, ela não tem pressa para voltar. Quando faz um desvio do seu caminho, decide passar em frente à casa da família para qual trabalhou como faxineira por muitos anos.
Há poucas falas no filme, o que nos dá espaço para contemplar a fotografia noturna do filme, que é magnífica.
Trópico Fantasma está disponível para assistir na FILMICCA (link não patrocinado).
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Tenho gostado tanto das fotos que você fez nos últimos tempos e compartilhou por aqui <3 Tem algo especial em poder andar propositalmente sem rumo, sabendo que o se perder não vai causar pânico. Andar por um lugar sem precisar de Google Maps é, no fim das contas, se sentir em casa.