(re)descobrindo: rádios
Como é que a gente volta a ouvir música depois de tanto tempo sem ouvir?
Um dos muitos efeitos colaterais que a pandemia me trouxe, como escrevi na edição anterior da newsletter, foi perder a vontade de ouvir música. Cansada de ouvir as músicas que sempre gostei de ouvir e sem saber o que de novo escolher.
Durante os primeiros meses do isolamento, as únicas músicas que eu ouvia vinham, além das muitas lives que assisti, do Chances With Wolves, do Ronca Ronca todas as sextas-feiras, e dos apps Poolsuite FM e Station Rotation. Eu então percebi que tudo que eu conseguia ouvir era rádio.
Nessa época eu (re)descobri o Radio Garden, um site criado pelo Instituto Holandês de Som e Imagem que disponibiliza diferentes estações de rádio em todo o mundo para a gente sintonizar.
Eu cresci ouvindo rádio. Na casa onde morei a maior parte da minha vida, tínhamos um aparelho de rádio na cozinha, onde passávamos boa parte do tempo. Fui uma criança que comia muito devagar e sempre era a última a sair da mesa, me restando apenas a companhia desse rádio que ficava o dia inteiro ligado.
Na adolescência, eu brigava com meu irmão para sentar no banco do carona no carro da família e poder tomar conta do rádio durante nossas viagens de carro. Quando eu descobri canais como a MTV e o Multishow, era como se as rádios tivessem ganhado imagens na minha cabeça.
Uma coisa que ninguém conta para a gente é que sair da casa dos pais significa também perder hábitos antigos e criar outros novos. Um dos hábitos que eu perdi depois de sair da casa dos meus pais foi justamente o de ouvir rádio.
Ano passado, por conta de um problema de saúde que o fez passar quase seis meses internado no hospital, meu pai ainda precisou ficar algum tempo de cama em casa preso a uma máquina. Ele ouvia rádio para passar o tempo e, numa das nossas chamadas de vídeo, disse que se lembrou de mim ouvindo a JB FM, uma das rádios do Rio que a gente escutava.
Quando eu, por minha vez, disse ao meu pai que também tinha começado a ouvir a JB FM graças à sua versão digital, ele me respondeu: "Estamos conectados."
É mesmo essa a ideia que as rádios me passam: conexão. Em meio ao momento de solidão que estamos vivendo, saber que existem outras pessoas ouvindo a mesma coisa que eu, ao mesmo tempo que eu. E não só isso, saber que existe alguém escolhendo aquelas músicas e as colocando para tocar. Uma pessoa de carne e osso, e não o algoritmo.
Para além da nostalgia de voltar ao passado, eu comecei a explorar o Radio Garden para viajar para outros países e aprender mais sobre a cidade onde eu vivo.
Por muito tempo eu evitei escutar as rádios de Amsterdã por achar que elas pudessem ser holandesas demais. Logo de cara eu encontrei uma estação de rádio criada por um italiano, imigrante como eu. A rádio se define como: "o antídoto para o isolamento (a rádio que leva você a um novo lugar)". A maior parte do tempo, essa rádio transmite o som das ondas do mar, que eu passei a escutar enquanto precisava me concentrar no trabalho.
As rádios de uma cidade podem dizer muito sobre o lugar. No mundo pré-pandêmico, eu me esforçava para conhecer a cultura de uma cidade frequentando suas casas de show e salas de cinema. Em Budapeste, onde chamam cinema de mozi, eu vi Personal Shopper legendado em húngaro numa sala que mais parecia a sala de uma casa, com cadeiras que não eram cadeiras de cinema. Na Bélgica, um país bilíngue, vi filmes legendados em francês e flamengo ao mesmo tempo. À noite, antes de dormir, eu sempre zapeava entre os canais da TV dos hotéis onde eu me hospedava, vendo filmes com atores famosos dublados em vozes e línguas que eu não conheço. No entanto, as rádios permaneciam sendo territórios desconhecidos para mim. O único contato que eu tinha com as estações de rádio dessas cidades era num táxi ou Uber a caminho do aeroporto para o hotel e vice-versa.
"Rádio é um país estrangeiro", diz o nome de uma estação de rádio de Nova Orleans. Eu me sinto atravessando fronteiras e visitando terras estrangeiras com diferentes fusos horários enquanto ouço radialistas falarem línguas das quais eu só consigo reconhecer termos relacionados à época atual: pandemia, coronavírus, vacina, distanciamento social. O que só me comprova que o mundo está conectado e tem enfrentado os mesmos problemas, apesar de alguns países estarem sofrendo bem mais que os outros por conta das suas histórias de exploração e dos seus governos fascistas e negacionistas.
Numa rádio de Moçambique falava-se em português de problemas muitos parecidos com os do Brasil: transportes públicos cheios e pessoas indo a bares sem máscaras. Pediam às pessoas ouvintes que fossem se vacinar, afirmando que a vacina é "segura e eficaz".
O que eu gosto dessas rádios é o elemento surpresa delas, o fato de não saber o que virá a seguir. Algo que experimentávamos com o shuffle dos nossos MP3 players e iPods. Gosto mais ainda de elas serem ainda bastante artesanais. Os sites de algumas dessas estações parecem ter parado no tempo.
Há algo de estranho que me atrai nessas rádios. Numa rádio de Abu Dhabi chamada Howler Radio, que se intitula "rádio web transmitindo direto do deserto", eu ouvi João Gilberto e fiquei pensando em como seria caminhar pelo deserto ouvindo música.
A Kiosk Radio de Bruxelas é uma rádio transmitida 24 horas por dia de um quiosque no meio de um parque da cidade. Um parque por onde eu passei com pressa tantas vezes durante os meses em que morei na Bélgica e nunca de fato parei para me sentar.
Ouvindo essas rádios eu penso que em qualquer lugar do mundo, até mesmo dentro do meu prédio, alguém pode estar mantendo uma rádio no seu isolamento para atravessar outros isolamentos distantes. Ao sintonizar essas rádios, eu abro minhas portas tanto para o conhecido quanto o desconhecido.
O músico e produtor musical Brian Eno também é fã declarado do Radio Garden, tendo feito uma curadoria das suas rádios preferidas de todo o mundo. Ele tem agora sua própria estação de rádio, The Lighthouse. O primeiro programa foi lançado em junho desse ano
Every Noise at Once é um site que reúne todos os gêneros musicais existentes no Spotify. Além de podermos ouvir 30 segundos de cada gênero, as setas ao lado dos nomes nos levam a uma página com artistas do gênero e uma playlist. E ainda dá para ver uma lista de lançamentos populares de 2020 por gênero e país
Drive & Listen é um site que permite ouvir rádio enquanto passeamos de carro por diferentes cidades do mundo. Me emocionei ouvindo mais uma vez a JB FM enquanto passeava pela orla do Rio de Janeiro numa madrugada nublada
Não consigo parar de ouvir esse disco com covers de músicas da Joni Mitchell cantados por artistas como Sufjan Stevens, Björk, Prince e até Caetano Veloso. Descobri no Ronca Ronca
Joni Mitchell fotografada em casa por Graham Nash em 1969
Fiquem bem dentro do possível e até a próxima,
Maíra