Dia desses disse à minha psicóloga que eu desaprendi a comemorar o meu aniversário. Ela me respondeu com uma pergunta: “O que essa data significa para você?”
Me veio à lembrança uma foto do meu aniversário de um ano. Minha mãe com um barrigão, grávida do meu irmão, e eu sentada no colo dela, quase caindo sem espaço. A uma semana exata daquele dia nascia meu irmão.
Meu irmão e eu crescemos como gêmeos. Por um tempo tínhamos a mesma altura e a mesma voz. Quando atendíamos o telefone, nunca sabiam qual dos dois estava falando. Essas semelhanças renderam a ele na escola o apelido de “Maíro”, que ele tanto odiava.
Meus pais, para economizar dinheiro, sempre organizaram uma única festa para nós dois. Às vezes dividíamos até o mesmo presente, como um patinete que ganhamos. Eu andava com o patinete até o fim da rua, voltava, entregava o patinete para o meu irmão, que andava até o fim da rua, voltava, e assim íamos alternando tarde adentro.
Já na adolescência, meu irmão me passou na altura e sua voz mudou, e eu comecei a comemorar meus aniversários sem ele. Mas nunca dei muita importância para as comemorações.
Quando saí do Brasil, longe dos meus amigos e familiares, me vi sem saber o que fazer nesse dia. Eu mais uma vez passei a dividir o aniversário, dessa vez com o rei da Holanda.
O dia é o maior feriado do país. A história dessa data começa nos anos 1880. O então Rei William III estava com a popularidade lá embaixo e decidiu criar um dia de festividades em homenagem à filha, a Princesa Wilhelmina, no dia 31 de agosto, o aniversário dela. Quando Wilhelmina assumiu o trono após a morte do pai, o dia então passou a se chamar Koninginnedag (Dia da Rainha). Em 1948, a filha de Wilhelmina, a Princesa Juliana, assumiu o trono e o dia passou para o aniversário dela, 30 de abril. A Rainha Juliana abdicou o trono em 1980 e quem assumiu foi sua filha Beatrix. Como seu aniversário caía no inverno, Beatrix decidiu manter as celebrações no dia do aniversário da filha.
Em 2013, Beatrix abdicou o trono e seu filho Willem-Alexander assumiu como rei. Como não fazia mais sentido haver o Dia da Rainha, naquele ano houve o primeiro Koningsdag (Dia do Rei) no dia do aniversário de Willem-Alexander, 27 de abril. Mais do que comemorar a Família Real da Holanda, a data sempre foi uma grande desculpa para as pessoas saírem às ruas e festejarem.
Nesse dia, muitas lojas, museus e cinemas do país fecham. Os mercados fecham mais cedo. Alguns restaurantes fecham para abrir uma barraca na calçada. É o único dia em que é permitido vender coisas na rua. Adultos e crianças estendem uma toalha no chão e vendem livros, roupas, brinquedos e todos os tipos de coisas que encontram em casa. Também é permitido beber álcool em lugares onde não é permitido o resto do ano. As ruas e canais ficam cheios de gente e é praticamente impossível se locomover de qualquer meio.
Como a Holanda é um país com poucos feriados, grande parte dos amigos que fiz aqui, imigrantes como eu, decidem viajar nessa época. E eu acabo passando o dia do meu aniversário em casa, como qualquer outro dia. Mesmo assim, tento sempre fazer alguma coisa que eu gosto.
No meu aniversário de 30 anos, lembro de abrir uma garrafa de vinho para ouvir o disco Cuz I Love You da Lizzo (que só depois fui descobrir que também compartilha a data de aniversário comigo) na sala de casa e assistir à primeira temporada da série The Twilight Zone lançada naquele ano. Mais tarde me vi na protagonista da série High Fidelity, Rob, interpretada pela Zoë Kravitz, que no seu aniversário de 30 anos, quando a perguntam quais são seus planos para o dia, ela responde:
“I'm gonna buy an expensive‐ish bottle of champagne and then I'm gonna order a shit ton of Indian food. And then I'm finally gonna start watching The Sopranos.”
Na noite anterior ao meu aniversário de 30 anos, quando eu já tinha aceitado que não ia comemorar a data, fui jantar com meu parceiro na rua e tive vontade de chorar quando vi que ele tinha convidado quatro amigos nossos que tinham ficado em Amsterdam, dois casais.
No primeiro ano da pandemia, com o advento das “webfestas” no Zoom, voltei a comemorar meu aniversário com amigos do Brasil. Aproveitei para vestir uma saia que eu nunca tinha usado antes porque estava esperando uma ocasião especial para usar.
Em 2021, fugi de Amsterdam para passar meu aniversário isolada numa casa de praia alugada no sul da Holanda e, ano passado, me refugiei numa floresta do país.
Com a mudança para um novo país, precisei criar novos rituais de comemoração de datas como Natal, Ano-Novo e também de aniversário. Mas diante das tragédias pessoais e coletivas que temos vivido, celebrar foi perdendo o sentido para mim. Em 2020, recebi minha permissão permanente de residência na Holanda depois de cinco anos morando aqui. Minha psicóloga perguntou se eu ia comemorar, mas isso nem passou pela minha cabeça.
Tenho pensado sobre a importância dos rituais numa vida sem descanso. No livro Sociedade do cansaço, num dos anexos intitulado “Tempo de celebração – a festa numa época sem celebração”, o filósofo Byung-Chul Han defende a ideia de que, no momento que trocamos a celebração pelo trabalho e pelo desempenho, perdemos a nossa relação com o divino:
“Por toda parte onde trabalhamos e produzimos não estamos junto aos deuses nem tampouco somos divinos. Os deuses nada produzem. Eles tampouco trabalham. Talvez devêssemos reconquistar aquela divindade, aquela festividade divina, em vez de continuarmos sendo escravos do trabalho e do desempenho. Deveríamos reconhecer que hoje perdemos aquela festividade, aquele tempo de celebração na medida em que absolutizamos trabalho, desempenho e produção. O tempo de trabalho que hoje está se universalizando destrói aquela época celebrativa como tempo de festa.”
(HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini, 2015)
Venho de uma família que, mesmo não sendo católica, sempre celebrou datas religiosas e outras datas comemorativas. Antes da saúde do meu pai piorar, ele dava festas juninas todos os anos. Até hoje ele faz questão de comemorar a data em que recebeu um transplante. Também comemora sempre que sai de uma internação hospitalar. Na sua última alta mês passado, depois de duas semanas internado no CTI, disse que faria um churrasco.
Vejo os rituais como uma oportunidade de fazer pausas de uma rotina extenuante para nos conectarmos com nós mesmos e os outros. É também uma forma de fechar e começar ciclos. E não precisa necessariamente ser uma festa. No meu aniversário em 2021, escrevi no Instagram:
Décadas a passar mal
e de repente o Sol
como diamantes
Estou bem
depois de estar mal
(Adília Lopes em “Convalescer” do livro “Estar em Casa”)
Os anos de 2020 e 2021 estão sendo assim. Muitos dias seguidos me sentindo mal e depois volto a me sentir bem com pequenas coisas: um dia de sol depois de semanas seguidas de frio e chuva, um café da manhã demorado de aniversário, mensagens carinhosas de amigos e familiares me desejando parabéns.
Um ritual que tenho mantido no dia do meu aniversário sem ter percebido como ritual é tomar um café da manhã farto e demorado que o feriado do Dia do Rei me proporciona. Essa costumava ser a minha refeição preferida do dia, mas desde que comecei a trabalhar, foi perdendo espaço na minha rotina, afinal qualquer horinha a mais de sono é sempre bem-vinda.
Eu, que sempre fiz aniversário no outono, depois que me mudei para o Hemisfério Norte, passei a fazer aniversário na primavera. Aqui na Holanda, a primavera é vista como um novo começo. É quando as pessoas voltam a ir para as ruas depois de meses de frio, chuva e neve.
“Voorjaarsschoonmaak” é a palavra que os holandeses usam para se referir à faxina de primavera. Antigamente era a faxina que as pessoas faziam com a chegada da primavera, quando depois de meses de escuridão, entravam em casa os primeiros raios de sol e se via a poeira acumulada. Então se fazia uma grande faxina. Cortinas e tapetes eram tirados para lavar, portas e janelas abertas para o ar circular, os móveis, colchões e travesseiros eram colocados para fora para pegar sol. Também faziam uma boa arrumação em roupas, livros e documentos.
A palavra “voorjaar”, uma das formas como os holandeses chamam a primavera, significa literalmente o início do ano, é quando o ano de fato começa.
Em 2023 quis me reconectar com a Maíra taurina, que adora ficar em casa e receber visitas, e também comemorar que meu gato ainda está vivo, mesmo testemunhando uma piora na sua saúde. Decidi fazer uma festa de aniversário em casa e chamar meus amigos que não viajaram.
E para acompanhar o meu tradicional café da manhã de aniversário, fiz uma playlist com músicas que expressam esse sentimento de recomeço, de voltar a ver beleza no mundo e encontrar prazer nas pequenas coisas, mas também de aceitar a passagem do tempo, os meus fios de cabelo branco cada vez mais numerosos. É tempo de me desfazer das roupas que não cabem mais em mim depois de eu ter passado por uma pandemia, de aceitar que meu corpo mudou e que eu também mudei.
Vocês têm algum ritual de aniversário? Me conta deixando um comentário ou respondendo ao e-mail.
Um abraço e até a próxima,
Maíra
gosto muito da surpresa de te receber e te ler na caixa de entrada! feliz vida, Maíra! te desejo motivos pra comemorar, tranquilidades e abraços quentinhos. te admiro! um beijo,
(ex-@yamakat)
Parabéns Maíra! Acabei de passar por uma foto da família real holandesa em comemoração, tiraram foto com o cachorrinho e tudo hahaha