Já faz algum tempo que tenho sentido a necessidade de aprender um idioma como hobby. Desde que saí do Brasil, estudei os idiomas falados na Bélgica, onde morei durante 9 meses, e na Holanda, onde moro há quase 10 anos. No Brasil, fiz uma graduação em língua inglesa e, mesmo que tenha sido por minha própria vontade, eu via nessa língua uma oportunidade de trabalho.
Ano passado, num impulso, comecei a fazer aulas particulares de coreano. As pessoas me perguntavam por que eu decidi estudar essa língua se não ouço k-pop nem vejo k-dramas. Eu respondia que tudo começou com a literatura coreana, mais particularmente com a autora sul-coreana Han Kang, que me introduziu à literatura desse país com o livro A vegetariana.
A minha jornada de aprendizado do coreano não foi fácil. Como uma criança no início da vida, eu precisei começar pela alfabetização, aprendendo o alfabeto coreano. Depois de 10 meses de estudos, eu ainda lia textos simples e curtos com muita dificuldade. O idioma estava demandando bastante de mim e não me deixava estudar outras coisas que me interessavam. Quando minha professora anunciou que sairia de licença maternidade, eu dei uma pausa nos estudos. Nesse tempo, eu cheguei à conclusão que não queria mais continuar. Eu queria estudar um novo idioma, mas não sabia qual.
Me peguei querendo aprender italiano por influência dos filmes da realizadora italiana Alice Rohrwacher, de quem eu gosto bastante, em particular seu filme mais recente, La chimera, um filme lindo em que o ator britânico Josh O'Connor e a atriz brasileira Carol Duarte atuam falando italiano. Fiz algumas aulas no Duolingo e estava encantada.
Por outro lado, eu pensava na possibilidade de voltar a estudar francês. Minha relação com essa língua começou em 2014 quando eu me mudei para Bruxelas. Como eu já escrevi antes aqui, eu nunca escolhi me mudar para lá. Apareceu uma oportunidade e eu quis ver como era. Nessa época, eu não conhecia absolutamente nada sobre o país, muito menos que era um país bilíngue cujas línguas oficiais eram o francês e o flamengo (uma variedade do holandês).
Assim que eu cheguei em Bruxelas e passei por entrevistas no centro de imigração e com a polícia do país, já esperavam que eu falasse pelo menos o francês. Nos meus primeiros dias na cidade, eu entendi que teria que aprender a língua o quanto antes. Foi então que eu me inscrevi num curso intensivo de francês com aulas de segunda a sexta, das 9h ao meio-dia.
Havia muita frustração por eu não estar aprendendo tão rápido quanto eu gostaria. Por muito tempo, achei que o principal objetivo de aprender um idioma era se comunicar, mas hoje acredito que, muitas vezes, é ser aceito. Eu tinha medo de errar quando eu falava em francês e ficava nervosa quando as pessoas não entendiam o que eu estava falando.
Por isso, desde que saí da Bélgica em 2015, eu nunca mais tinha me aventurado a voltar a aprender a língua.
Escrevi uma lista em que comparava os motivos para eu aprender o italiano e o francês e, no final, o francês acabou ganhando. Além de eu não precisar começar do zero, três das minhas realizadores de cinema preferidas são de países francófonos: Agnès Varda, Chantal Akerman e Marguerite Duras.
Voltei a fazer aulas de francês em abril, dessa vez particulares, 10 anos depois das aulas oferecidas pelo governo belga num grupo em sua maioria de refugiados da Síria em Bruxelas. Não só a experiência de aprendizado tem sido bem diferente, como muita coisa mudou na minha vida em 10 anos.
Hoje me sinto mais livre para errar porque tenho a consciência de estar aprendendo apenas porque eu quero. Por outro lado, eu moro na Holanda e pago o preço de estar aprendendo outra língua que não o holandês.
“Você já devia ter aprendido o holandês”, as pessoas me dizem.
Desde que me mudei para cá, fiz três cursos diferentes de holandês e também aulas particulares. Assim como com o francês na Bélgica, tentei ser a boa imigrante que tenta se encaixar a todo custo, mas depois de inúmeras tentativas frustradas de interação com locais, acabei abandonando de vez o holandês.
Há três anos, recebi a notícia de que meu tio teve um AVC e, por consequência, sofreu afasia. Com o tempo, ele foi recuperando a fala, mas ainda se comunica com certa dificuldade. Meu tio sempre foi o contador de histórias da família e eu pensava como seria daqui em diante. Enquanto eu me preparava para ir para o Brasil e visitá-lo, procurei no Google qual era melhor forma de lidar com uma pessoa que estava nessa condição:
“Ao se comunicar com uma pessoa que tem afasia, pense em como você se comunicaria com alguém que fala um idioma diferente”, um site dizia. “Elogie. Não critique erros gramaticais, ou outros. Incentive e deixe a pessoa motivada. […] Use perguntas SIM x NÃO com palavras e frases simples. Por exemplo, use ‘garfo’ e ‘colher’ em vez de ‘talheres’.”
Meu tio pôde se comunicar comigo, a única diferença é que agora ele fazia mais esforço para falar. Ele falava mais lento do que estava acostumado e às vezes trocava palavras, usando “cavalo” em vez de “cachorro”, erros comuns às pessoas que estão aprendendo um idioma e que são possíveis de entender pelo contexto.
Lembro da frase que li no site que encontrei na internet: “pense em como você se comunicaria com alguém que fala um idioma diferente.” Na vida real, os holandeses falam em inglês comigo só de ver a minha aparência. Os poucos que falam holandês, trocam para o inglês quando veem que eu não entendi a pergunta que eles fizeram.
No Duolingo, enquanto eu aprendia holandês, meus amigos mandavam corações ou celebravam com confetes ao ver que eu fiz mais de 10 lições num único dia e que aprendi mais de 200 palavras. Na vida real, esses pequenos passos não eram suficientes durante a época em que trabalhei numa empresa holandesa onde as reuniões eram inteiramente em holandês.
Apesar de estar já há algum tempo sem estudar holandês e falar apenas o básico dessa língua quando faço pedidos em cafés ou restaurantes, ou quando falo com atendentes em mercados ou lojas, meu cérebro teima em misturar francês e holandês. Respondo “ja” quando deveria responder “oui” e vice-versa. Meu “bilinguismo” (entre muitas aspas) não é natural como o de muitas pessoas que eu conheço aqui na Holanda, com pais de diferentes nacionalidades ou que vêm elas mesmas de países bilíngues. Eu preciso abdicar do holandês para me concentrar no francês.
No início do mês, li o livro In Other Words da escritora Jhumpa Lahiri, ainda sem tradução no Brasil1. Filha de pais indianos, Jhumpa nasceu em Londres, mas cresceu no Estados Unidos. Aos 25 anos de idade, ela decidiu aprender italiano e relata a sua longa odisseia de aprendizado ao longo de 20 anos nesse livro, o primeiro que ela escreveu nessa língua. Sua paixão pelo italiano beira a obsessão, uma “tentativa obstinada”, nas suas palavras.
Com essa língua, ela diz sentir uma conexão e, ao mesmo tempo, um distanciamento:
“Não tenho uma necessidade real de aprender esta língua. Não moro na Itália nem tenho amigos italianos. Tenho apenas o desejo.”
(Jhumpa Lahiri, In Other Words; em tradução livre)
Enquanto lia sobre o processo de aprendizado da autora, encontrava as palavras para o meu próprio aprendizado do francês.
Ainda nos Estados Unidos, Lahiri se aventura a ler o livro Gli indifferenti do escritor italiano Alberto Moravia no idioma original:
“Consigo entender e ao mesmo tempo não entendo. Renuncio ao conhecimento para me desafiar. Troco a certeza pela incerteza.
Leio com lentidão, com atenção. Com dificuldade. Cada página parece estar levemente coberta por uma névoa. Os obstáculos me estimulam. Cada nova construção parece uma maravilha. Cada palavra desconhecida, uma joia.”
(Jhumpa Lahiri, In Other Words; em tradução livre)
Lendo na língua estrangeira que ela ainda está aprendendo, a autora redescobre seu prazer pela leitura.
Quando decide passar um tempo na Itália para aprender melhor o idioma, ela começa a escrever um diário com o seu italiano limitado.
“Escrevo num italiano horrível, errado, vergonhoso. Sem correção, sem dicionário, apenas por instinto. […]
É como se eu escrevesse com a mão esquerda, minha mão fraca, aquela com a qual não devo escrever. Parece uma transgressão, uma rebeldia, uma tolice.”
“Não reconheço a pessoa que está escrevendo neste diário, nesta nova língua rudimentar. Mas eu sei que é a parte mais sincera, mais vulnerável de mim.”
(Jhumpa Lahiri, In Other Words; em tradução livre)
Para a minha alegria, minha nova professora de francês (uma francesa radicada na Alemanha) não passa tarefas de casa. Na sua primeira aula, ela disse que, em vez disso, me pediria para fazer duas coisas todos os dias: 1) ler, ver ou ouvir qualquer coisa em francês (um artigo na internet, uma entrevista, uma poesia, um conto, um podcast, um audiolivro) e 2) escrever entradas curtas sobre o meu cotidiano num diário nessa língua.
No início, achei que era algo que eu poderia incorporar à minha rotina sem problema algum, mas apesar de encontrar sempre alguma coisa para ler, ver e ouvir em francês todos os dias, a segunda tarefa, escrever um diário, começou a me causar ansiedade. As páginas em branco eram ameaçadoras. Eu não conseguia encontrar nada para escrever e, quando eu finalmente encontrava, não sabia se o que eu estava escrevendo estava certo. Depois de algum tempo, eu fui apenas seguindo o fluxo, sem medo de errar. Ainda procuro palavras no dicionário e algumas regras de gramática, mas sem me preocupar se alguém vai ler. Como Lahiri, eu sinto estar fazendo algo errado, mas por outro lado, por ser algo secreto, também experimento a liberdade da escrita no seu estado mais simples.
“Não tenho muitas palavras para me expressar, pelo contrário. Tenho a consciência de um estado de privação. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me livre, leve. Descubro o motivo pelo qual escrevo, a alegria somada à necessidade. Reencontro o prazer que sinto desde criança: colocar palavras num caderno que ninguém lerá.
Em italiano, escrevo sem estilo, de modo primitivo. Estou sempre em dúvida. Tenho a apenas a intenção, além de uma fé cega mas sincera, de ser compreendida e de compreender a mim mesma.”
(Jhumpa Lahiri, In Other Words; em tradução livre)
Lembro de uma entrevista com a Anne Carson em que ela diz:
“Eu gosto do espaço entre as línguas, porque é um lugar de erro ou de equívoco, de dizer as coisas não tão bem quanto se gostaria ou de não conseguir dizê-las de jeito nenhum. E isso é útil para escrever, acho eu, pois é sempre bom se desequilibrar, ser removida da complacência com que você normalmente se põe a observar o mundo e dizer o que observou.”
(Anne Carson; numa tradução de Maria Cecília Brandi e Paloma Vidal no livro Viver e traduzir de Laura Wittner)
Apesar do fato de que escrever um diário em francês, uma língua que ainda não domino, me torna mais vulnerável, o distanciamento entre o português e o francês me torna mais ativa nas minhas observações.
Num capítulo do livro chamado A metamorfose, Lahiri compartilha um e-mail que recebeu do escritor italiano Domenico Starnone, em que ele diz:
“Uma nova língua é como uma nova vida, gramática e sintaxe reformulam você, e você adentra uma outra lógica e um outro sentimento.”
(Domenico Starnone, In Other Words; em tradução livre)
Dizem que temos diferentes personalidades quando falamos em diferentes idiomas. Recentemente reli pela segunda vez O lugar da Annie Ernaux. Esse foi o primeiro livro que eu li da autora e é o meu preferido dela até hoje. A primeira vez que eu o li foi quando tive covid e precisei ficar isolada das pessoas que moravam comigo. A segunda foi num voo de emergência que precisei pegar para o Brasil para o funeral do meu pai.
Se o momento de agora é diferente, há outra diferença: dessa vez eu reli o livro em francês. O livro é o mesmo, mas também é diferente, assim como eu também sou a mesma pessoa, mas numa situação diferente.
Quando terminei a leitura, voltei ao livro traduzido em português para ver como alguns trechos foram traduzidos e também vi que marquei diferentes passagens do livro nas duas línguas.
Jhumpa Lahiri acredita que ler numa língua estrangeira é a forma mais íntima de leitura e, por consequência:
“Acredito que traduzir é o modo mais profundo, mais íntimo de ler qualquer coisa. Uma tradução é um belo encontro dinâmico entre duas línguas, dois textos, dois escritores.”
(Jhumpa Lahiri, In Other Words; em tradução livre)
Agora eu vejo que, enquanto buscava as palavras que eu não conhecia durante a leitura d’O lugar, eu buscava algum tipo de diálogo entre a minha língua materna e o francês, mas também entre mim e Ernaux e as nossas experiências de perder nossos pais.
Reconheço meu privilégio de poder bancar com meu salário de agora as aulas de um idioma que anos atrás estava fora do meu alcance.
Aprender um novo idioma é um processo contínuo. Mesmo com o inglês, que há mais de 15 anos é a minha língua de trabalho, eu continuo a aprender. Mas enquanto aprendo, me abro para um mundo de novas possibilidades, como se uma nova vida despontasse no horizonte.
Li a versão bilíngue em inglês (traduzida por Ann Goldstein, que também traduziu os livros da Elena Ferrante) e italiano. Descobri na última edição da newsletter da
que ela traduziu o livro do italiano para o português, mas que a tradução não foi publicada por falta de interesse no tema. Uma pena!Um abraço e até a próxima,
Maíra
Eu morro de vontade de estudar francês, porque amo a literatura, a arte e a música francesas. Tenho até uma poesia do Rimbaud tatuada no idioma original. Mas a minha frustração veio ao perceber que não sou muito boa com idiomas como, às vezes, acho que sou. Ta aí o alemão para provar. Minha odisseia com ele é similar à sua com o holandês (duas línguas desgraçadas, aliás! hahahahaha). Bem, agora to me aventurando a aprender chinês, porque quero ir pra lá e gostaria de saber o mínimo para me virar um pouco, mas meu marido diz que é apenas para escapar do alemão.
Adorei essa frase "Por muito tempo, achei que o principal objetivo de aprender um idioma era se comunicar, mas hoje acredito que, muitas vezes, é ser aceito." Concordo bastante.
Boa sorte com o francês.
Também estou estudando francês, com o sonho de ler Annie Ernaux no original (e para fugir do holandês).