No início do ano, uma amiga que mora em Lisboa me mandou mensagem dizendo que estava pensando em comprar ingresso para o show da Beyoncé que aconteceria em Amsterdam em junho desse ano e perguntou se eu queria ir também. Desde dezembro do ano passado, eu vinha ouvindo o disco mais recente da cantora, mas depois da pandemia, não sentia mais vontade de ir a shows, principalmente shows de grandes proporções.
Eu sempre gostei muito de ir a shows, tanto acompanhada quanto sozinha, contava os dias para ir a um, mas estava me sentindo relutante a voltar a fazer algumas das coisas que eu gostava de fazer antes do isolamento. Como escrevi anteriormente aqui, sinto que estou mais sensível ao barulho e ainda me incomodo com lugares muito cheios.
Também tinha o hábito de ir com frequência ao cinema. Houve uma época em que eu tinha um cartão de assinatura mensal que me dava acesso a praticamente todos os cinemas alternativos na Holanda. Mas depois de ter me mudado para uma casa no subúrbio de Amsterdam no ano passado, eu comprei um projetor de segunda mão e converti o sótão de casa num cinema particular. Às vezes sinto falta do ritual que é ir ao cinema, mas tenho me dado por satisfeita de ver filmes no conforto de casa.
Em compensação, diferentemente dos filmes, a experiência de ouvir música em casa não é mesma coisa do que ir a um show. Por mais que eu ainda goste de assistir a shows inteiros no YouTube e tenha consumido bastante lives nos anos pandêmicos, é impossível recriar o que sentimos num show ao vivo. Cada show é único.
Pensei que o show da Beyoncé seria uma boa oportunidade de me reconectar com a minha amiga, que eu não via desde bem antes da pandemia, e ao mesmo tempo com a Maíra-frequentadora-de-shows™, e acabei comprando ingresso.
No livro How Music Works, o músico David Byrne conta como, com o advento da música gravada em 1878, os músicos passaram a compor músicas que pudessem ser ouvidas tanto ao vivo, num concerto, quanto em casa. Ao longo dos anos, também se tornou possível ouvir as músicas em bares e discotecas, onde as pessoas se encontravam para dançar ao som de jukeboxes ou DJs, sem a presença dos músicos, o que também acabou influenciando a música que estava sendo composta.
Segundo Byrne, nos anos 1960, a música conquistou novos espaços, as arenas e os estádios, onde não é toda música que funciona. Nesses espaços, a música ganhou uma nova função, com os shows servindo como oportunidades de encontros, de criar vínculos, e ainda como rituais.
No texto que escrevi sobre comemorar aniversário, eu disse:
“Vejo os rituais como uma oportunidade de fazer pausas de uma rotina extenuante para nos conectarmos com nós mesmos e os outros.”
Derivada da palavra latina “ritualis”, a palavra “ritual” está relacionada a “rito”, que é um costume ou prática cerimonial previamente estabelecido, ligado ou não a uma religião. Se pararmos para pensar, um show é uma espécie de cerimônia que entra nessa categoria. Há regras e protocolos a seguir e é uma experiência compartilhada por uma comunidade.
Com os novos espaços, artistas e bandas começaram a compor levando isso em consideração e, para Byrne, ouvir esse tipo de música em outro contexto “recria a memória ou a expectativa daquele encontro – um estádio dentro da sua cabeça” (a tradução e o grifo são meus).
Até hoje quando eu ouço Live and Let Die do Paul McCartney com o Wings, me lembro das apresentações dele que assisti com diferentes amigos em estádios no Rio e em São Paulo. Posso até ouvir mais uma vez os fogos de artifício que acompanharam a música. Todos os anos, o Facebook, que para mim virou apenas um arquivo de memórias, me mostra as fotos que tirei na fila com uma amiga e outras pessoas que conheci através dela, e eu penso naqueles dias com nostalgia.
O show da Beyoncé que eu vi aqui em Amsterdam, parte da Renaissance Tour, aconteceu na Johan Cruyff Arena, o principal estádio de futebol da cidade, no dia 18 de junho. A turnê do disco de mesmo nome começou no dia 10 de maio em Estocolmo, na Suécia, e foi a sua primeira turnê solo desde da The Formation World Tour de 2016.
Durante quase 3 horas, Beyoncé deixou o palco várias vezes para trocar de figurino, num show dividido em 7 atos: Opening, Renaissance, Motherboard, Opulence, Anointed, Mind Control e Encore. Mesmo nos intervalos, o show continuava com vídeos no telão, como um filme de ficção científica em que vemos Beyoncé emergir numa armadura metálica em referência ao filme Metrópolis de Fritz Lang.
Os telões gigantescos criavam até mesmo a estrutura do palco. Beyoncé entrou no palco em cima de um pequeno tanque de guerra e também no cavalo brilhante que aparece na capa do disco, que só não voou aquela noite porque tinha quebrado a pata na noite anterior.
A capa do disco Renaissance faz alusão à famosa foto de Bianca Jagger montada num cavalo no Studio 54, uma boate de Manhattan, onde aconteciam festas icônicas frequentadas por celebridades como Cher, Diana Ross, Grace Jones, Andy Warhol e Michael Jackson no final dos anos 1970. O disco marca sua fase pós-covid.
As músicas do disco foram pensadas para serem tocadas numa pista de dança, apesar de muita gente ter permanecido imóvel nas apresentações que tem acontecido pela Europa.
Os dançarinos deram um show à parte. No penúltimo ato do show, ao final da música Pure/Honey, eles se reuniram no palco para uma batalha de voguing, um estilo de house dance típico da cena queer dos anos 1980. Renaissance é uma homenagem ao ballroom e às suas raízes na cultura negra.
Em Faith, Hope and Carnage, um livro de conversas entre Nick Cave e o jornalista Seán O'Hagan que já mencionei aqui antes, o músico fala do poder da música compartilhada nos shows. Segundo Nick Cave, não há nenhuma outra forma de expressão artística que consiga transmitir ou evocar a sensação de assombro que a música proporciona, especialmente no que diz respeito ao poder coletivo de um concerto. Ele acrescenta (a tradução é minha):
“[A música] tem a capacidade de nos conduzir, mesmo que temporariamente, a um reino sagrado. A música toca no anseio que muitos de nós temos instintivamente – um vazio a ser preenchido por Deus, sabe? É a forma artística que consegue preencher esse vazio de forma mais eficaz, porque nos faz sentir menos sozinhos existencialmente. Faz com que a gente sinta uma conexão espiritual. Algumas músicas até conseguem nos levar a um lugar onde é possível acontecer uma mudança espiritual fundamental de consciência. Na melhor das hipóteses, ela pode evocar um espaço sagrado.”
Eu não sou uma pessoa religiosa. Também nunca gostei de futebol, que pode suprir essa necessidade para algumas pessoas. Mas num show como o do Nick Cave ou da Beyoncé, no meio de mais de 50 mil pessoas, há uma conexão que vai além da linguagem, a música sendo ela mesmo uma linguagem por si só. Existe um sentimento de comunidade que não encontro em outro lugar como imigrante num país cuja língua eu mal falo. Por coincidência, uma das pessoas que se sentaram ao meu lado era brasileira e ficamos conversando até o show começar.
Antes do lançamento do disco Renaissance, Beyoncé compartilhou no seu site que sua intenção com o disco era “criar um lugar seguro, um lugar livre de julgamentos. Um lugar para ser livre do perfeccionismo e de pensar demais. Um lugar para gritar, se soltar, se sentir livre.” No metrô a caminho do estádio, eu podia reconhecer as pessoas que também iam ao show, vestindo prata, paetês, glitter e roupas coloridas como no Carnaval do Brasil, onde temos a liberdade de nos vestirmos como quisermos. Quando vou a um show, sinto como se eu fizesse parte de um grupo, de algo maior. E mesmo que essa conexão seja temporária, ela existe para mostrar que eu não estou sozinha em nenhum lugar do mundo.
Cantar até depois do fim
Mês passado, no dia que Elza Soares completaria 93 anos, saiu um novo disco póstumo da cantora. No Tempo da Intolerância conta com músicas compostas pela própria artista, além de composições de Rita Lee, Josyara, Pitty e Dona Ivone Lara.
Em tempos de IA, em que é possível usar a voz e até mesmo recriar a imagem de artistas que já morreram, vale ressaltar que Elza tinha planos de lançar o disco em 2020, mas foi impedida por causa da pandemia.
Tive o privilégio de ver a Elza tocar aqui na Holanda em 2016 durante a turnê de A Mulher do Fim do Mundo no festival Le Guess Who?, um dos meus festivais de música preferidos do país. Até hoje me lembro da conexão que senti enquanto cantava as suas músicas no meio tanto de pessoas vindas do Brasil, quanto de outros países. O show está registrado na íntegra no YouTube e de vez em quando eu ponho para assistir mais uma vez. Eu faço uma aparição na plateia a partir de 37:32 com meus antigos óculos de armação transparente.
O line-up da edição desse ano do festival já está disponível e, além de atrações internacionais como Stereolab e o novo projeto de Jonny Greenwood com o músico israelense Dudu Tassa, também vão tocar artistas brasileiros como João Donato, Domenico Lancellotti e Ana Frango Elétrico. Eu estarei lá.
Um abraço e até a próxima,
Maíra
Fui no show do roger waters em Amsterdam. Foi um espetáculo incrível mas achei um pouco esquisito como todo mundo era bem contido, senti falta da empolgação brasileira. Um beijo